*Allan Robert, da Itália
“Eu era muito possessivo, até que um dia completei 16 anos e a coisa mudou”, escrevi um dia. A insegurança é inerente à adolescência, mas um dia a gente cresce e descobre que é dono da própria vida. Descarregar a própria culpa em fatos ou situações controladas por terceiros é prova de imaturidade e incapacidade de discernimento. Claro que cada caso é um caso e situações dramáticas criam traumas graves, mas as exceções devem ser tratadas como tais e a violência não tem justificativa. Em pleno 2010 me assusto com a quantidade de adultos que ainda não completaram 16 anos. Seres humanos que tratam outros seres humanos como se fossem objetos de sua propriedade. Poderia viver outros 200 anos e tenho certeza de que ainda me assustaria com tal atitude.
O nome Sarah Scazzi não é apenas a mais recente vítima da espetacularização mórbida da mídia italiana, mas também um dos muitos casos da violência contra as mulheres na Itália. No dia 26 de agosto ela e a prima Sabrina deveriam encontrar-se à tarde para ir à praia, a 18 quilômetros da rua onde ambas moravam. O tio agricultor, pai de Sabrina, que vinha insistentemente insinuando-se à sobrinha, teria voltado mais cedo naquele dia e teria permanecido na garagem próxima à sua casa, onde – não se sabe exatamente como, se com o uso da força ou não – teria entrado com a sobrinha. Após a menina, de apenas 15 anos, recusar-se mais uma vez ao tio, foi estrangulada. Morta, foi violentada, seu corpo foi jogado em um poço, coberto com pedras e sua roupa e celular foram queimados. Celular que o próprio tio “encontrou” há poucos dias, ajudando a polícia a decifrar o mistério, fazendo-o confessar depois de 10 horas de interrogatório, indicando, inclusive, o local exato em que escondera o corpo. Nos últimos dias acabou confessando que a filha Sabrina teria participado do crime. Os investigadores trabalham com várias hipóteses, enquanto pai e filha estão na cadeia. Terrificante.
“Eu era muito possessivo, até que um dia completei 16 anos e a coisa mudou”
Há poucas semanas uma família paquistanesa só não recebeu a mesma repercussão, mas também foi vítima da violência contra as mulheres. O filho tentou matar a irmã que se recusava a casar-se com um homem escolhido pelo pai, hábito cultural ainda muito praticado nos dias de hoje. A mãe, tentando defender a filha, acabou sendo morta pelo próprio marido. A filha continua internada e talvez sobreviva. A dignidade da família foi preservada mas já não faz nenhuma diferença, pois a família não existe mais. Nos últimos anos desenvolvi um certo medo de ler jornais ou ligar a TV. Se o faço é porque ainda acredito que existam notícias boas e que nem tudo está perdido. Mas a minha ingenuidade tem limite.
A parte mais vil desse comportamento é que raramente tudo acontece às escondidas. Tem sempre alguém que viu, sabe, intui, desconfia, é conivente ou prefere não se intrometer. A lista de mulheres e crianças vítimas de abusos ou violências na Itália cresce assustadoramente. Muitas vezes a vítima sente vergonha em contar para alguém, ou foi ameaçada para não falar; outras, esperam que tudo se resolva sem maiores consequências, (sentindo-se culpadas) preferem pensar que não é tão grave assim e que conseguirão encontrar um modo de sair da situação. A vítima de uma agressão não é culpada de nada e deve denunciar imediatamente e diretamente à polícia, pois muitos familiares procuram minimizar a situação (“viu, sabe, intui…”). “O mais doloroso é que todos esses fatos, graves e reveladores, são tratados isoladamente e não como resultado de uma cultura em que a mulher é um objeto”.
Segundo o Instat, o instituto italiano de estatística (dados de 2006), 6 milhões e 743 mil mulheres entre os 16 e 70 anos, 31,9% da população feminina italiana, declarou ter sido vítima de violência física ou sexual ao menos uma vez na vida, sendo que 14,3% teria sido vítima do próprio marido/companheiro/convivente. Mais: o próprio Instat estima que em 93% dos casos a violência do cônjuge não é denunciada. Estarrecedor, mesmo para um garoto de 15 anos possessivo, mas que nunca foi violento.
Eu, que desde sempre fui contra a violência, contra a pena de morte, a favor do “paz e amor, bicho!” e tornei-me pai de duas moças solares, temo pela incolumidade das minhas três garotas (tem a Eloá, também), tanto quanto temo pela minha reação em caso de violência contra elas. Sei que a situação não é apenas italiana e que em muitos outros países as mulheres encontram-se em situações piores, mas em pleno século XXI esse tipo de situação não deveria encontrar-se fora de controle num país do chamado “Primeiro Mundo”. Ou será que sou ingênuo demais e ranzinza além da conta?
Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.