Allan Robert P.J.
Curioso como tudo tem um começo. É impossível o cidadão chegar ao seu apartamento, no vigésimo andar de um prédio qualquer no centro de São Paulo, por exemplo, e dar de cara com um camelo mastigando calmamente a salada que estava na geladeira. Esse tipo de coisa absurda só acontece nos filmes. Ou seja, não dá pro bicho ir parar ali, assim, sem mais nem menos. Daí que eu repito: tudo tem um começo. É o fim que, às vezes, não dá para enxergar.
Me falaram de uma certa explosão, a que teria sido o início de tudo, mas não consegui entender como algo que ainda não existe, explode. Essa estória de um amontoado de energia se comprimindo me deixa angustiado e abro uma boa garrafa de vinho, que me confunde ainda mais as idéias e me faz imaginar a tal explosão como o estouro de uma garrafa de champagne.
Mas voltando ao começo, no começo do bicho homem não existia lixo. A época não deveria ser lá das mais confortáveis, com goteiras nas cavernas e falta de desodorante, mas pelo menos ainda não existia lixo. O que não estava vivo, participando da luta pela sobrevivência, estava se decompondo e voltava rapidamente ao ciclo de renovação, adubando plantas, sendo devorado por outros animais e bactérias e logo, logo, tudo desaparecia. A Natureza criava e ela mesma desenvolvia os mecanismos para reciclar.
Mas o tal do bicho homem não estava satisfeito de ser bicho. Queria ser apenas homem e traçar os próprios caminhos. Esses caminhos começaram a se alongar, e precisaram dos automóveis, com pneus e gasolina. E de garagens, nos prédios altos das cidades grandes, que é para onde todos esses automóveis se dirigem. Na parte miserável desse globo desigual, onde as habitações são pouco mais que cavernas, as pessoas vão às feiras a céu aberto e encontram a mercadoria a granel, amontoada sobre lonas, dentro de cestas, sobre um balcão improvisado ou espalhadas pelo chão. A mercadoria adquirida é levada para casa dentro de sacolas de lonas, balaios, latas e trouxas. Tudo reciclável e biodegradável.
Já na banda de cá, onde vive a sociedade industrializada, até mesmo os pobres se vêem obrigados a adquirir lixo, pois tudo vem embalado em latas, plásticos, vidros e muito papel, que por não serem comestíveis, as pessoas vão jogando ali, no cantinho, dentro de uma lata ou de um saco, que depois será levado para um imenso depósito com outras latas e sacos. E que no caso da região Campania, cuja capital é Nápoles, no sul da Itália, vai-se acumulando até… Bem, ninguém sabe quando.
Como os habitantes de Nápoles descobriram que não adianta separar o lixo para ser reciclado, uma vez que as empresas que deveriam tratar o lixo não o fazem, tudo acaba misturado e ninguém se preocupa com isso. Mais uma vez os depósitos estão lotados e fechados; o povo reclama uma ação do governo enquanto o lixo toma conta das cidades de um modo tão espantoso que ainda não entendi como não foi decretado o estado de calamidade pública, pois o problema se arrasta desde 1994.
São caminhões e mais caminhões de lixo produzido diariamente, que vão se acumulando pelas ruas. Os depósitos são imensos campos com milhões de pacotes gigantes – o depósito serve para empacotar o lixo em pellets gigantescos – empilhados por que ninguém sabe o que fazer com eles. O projeto inicial era usar o material orgânico para vender como adubo e reciclar o que pudesse ser reciclado. Como ninguém se preocupou em fiscalizar se as empresas separavam o material, os habitantes acabaram descobrindo o esforço inútil e o abandonaram.
São imensos paralelepípedos envoltos em lona plástica com todo tipo de lixo dentro, empilhados tão altos que os guindastes já não conseguem aumentar a pilha. Não serve para a indústria da reciclagem, não serve para adubar o campo, não pode ser incinerado por que as dioxinas liberadas envenenariam o ar. Os velhos incineradores foram reativados e já voltaram à ação, mas o lixo é muito, os lixeiros fazem greve, os moradores protestam impedindo que os velhos aterros sejam reativados e o caos cheira muito mal. Mandaram o exército para lá, mas como militar não é urubu, pouco podem fazer os bravos soldados, impotentes diante das toneladas diárias de lixo que vão parar nas ruas, que as calçadas já estão lotadas.
Esta crônica não tem um fim. As regiões vizinhas não querem nem ouvir falar do lixo alheio; o responsável da Defesa Civil, que tentou resolver o problema há dois anos, entregou ao Governo um relatório produzido em conjunto com a Organização Mundial da Saúde, demonstrando que a quantidade de doenças causadas pelo acúmulo de lixo aumentou de forma exponencial nos últimos 16 anos, e eu tenho a impressão de saber onde foi para o tal relatório, que não impressionou ninguém; os moradores de outras zonas estão se organizando para impedir que novos depósitos sejam construídos; mas o lixo continua a ser produzido. É como se cada napolitano encontrasse um camelo dentro do apartamento. E isso nem é um filme.
Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.