Morreu um dos principais atores nas negociações entre os zapatistas e o governo do México. Como bispo da diocese de Chiapas, Samuel Ruiz ganhou fama mundial em 1991 por ocasião do levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Sua intervenção impediu um massacre que poderia levar a um genocídio. Samuel Ruiz foi participante e protagonista da Teologia da Libertação e da opção preferencial pelos pobres que impôs em sua diocese desde 1975, em uma época dominada por golpes de Estado e por ditaduras militares na América Latina.
Gerardo Albarrán de Alba – Página/12
“Eu vim para evangelizar os índios, mas terminei sendo evangelizado por eles”, disse certa vez Samuel Ruiz García, a quem as comunidades chamavam de “bispo dos pobres e dos povos originários”. Ele morreu segunda-feira (24) e muitos choram a ausência de quem dava voz aos sem voz.
Tatik Samuel – como era chamado nas comunidades indígenas – seria objeto de uma celebração hoje (25), preparada há meses em San Cristóbal de las Casas, para marcar os 51 anos de sua posse como bispo da diocese de Chiapas, da qual se aposentou em 1999, ao completar 75 anos. Em lugar da celebração, seus restos são velados desde a noite de ontem na catedral de San Cristóbal, onde será sepultado quarta-feira (26).
Imerso nos debates teológicos e canônicos do Concílio Vaticano II e dos subsequentes concílios de Medelin, Puebla e Santo Domingo, Samuel Ruiz foi participante e protagonista da Teologia da Libertação e da opção preferencial pelos pobres que impôs em sua diocese desde 1975, em uma época dominada por golpes de Estado e por ditaduras militares na América Latina. Mas foi a partir de sua adesão à corrente da antropologia cultural que chegou ao que seria o axioma de sua pastoral: “a dualidade opressão-liberdade e a proposta de um ser cultural próprio, culminando com a igreja autóctone” que provocou fortes reações dentro e fora da Igreja Católica, segundo o historiador mexicano Jean Meyer, que certa vez o comparou com os bispos Helder Câmara, do Brasil, e Arnulfo Romero, de El Salvador, “arraigados na tradição e flexíveis na ação”, que reagiram “de maneira complicada diante de situações complicadas”.
Mas não era marxista, como o rotulavam seus detratores. Nem de longe. Católico tradicional e ortodoxo, Samuel Ruiz chegou a Chiapas em 1959 como bispo da diocese de San Cristóbal, apenas 12 anos depois de ter sido ordenado sacerdote, ao término de seus estudos de Teologia na Universidade Gregoriana de Roma. A realidade o esbofeteou: algumas regiões de Chiapas viviam com estruturas sociais tão atrasadas que se assemelhavam ao período medieval, e sua alma ficou perturbada pelo tratamento dado aos índios escravos que eram comprados e vendidos como ovelhas. Samuel Ruiz substituiu um Estado ausente e se converteu em defensor dos pobres e advogado dos índios, promoveu o respeito à mulher e às crianças, a tomada de consciência dos atores sociais e a “revolução das expectativas crescentes”. Em 1988, fundou o Centro de Direitos Humanos Frei Bartolomeu de las Casas, um dos mais importantes e reconhecidos no México até hoje.
Figura central na Conferência Episcopal Latinoamericana e em Roma, ganhou fama mundial em 1991, durante o levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Sua intervenção impediu um massacre que poderia ter se tornado um genocídio, e ele se converteu em um ator fundamental nas negociações de paz entre o EZLN e o governo mexicano ao qual havia declarado guerra, ainda que Jean Meyer tenha documentado a condenação de Tatik Samuel à luta armada e seu distanciamento do mítico Subcomandante Marcos, que nunca tornou público. Apesar disso, em maio de 1998, o então presidente Ernesto Zedillo acusou o bispo de encabeçar a “pastoral da divisão” e a “teologia da violência”, devido à decisão de Tatik de dedicar sua vida a formar comunidades eclesiais de base em cada uma das comunidades indígenas de Chiapas.
O papel conciliador de Samuel Ruiz também fez com que participasse de uma comissão de negociação entre outra guerrilha mexicana, o Exército Popular Revolucionário (EPR) e o governo federal. Também participava dessa comissão o escritor Carlos Montemayor, falecido no ano passado.
Samuel Ruiz vivia há vários anos em Querétaro, 200 quilômetros ao norte da capital do país, e realizava apenas visitas esporádicas à diocese da qual foi nomeado bispo emérito. A distância que manteve obedecia a sua intenção de não interferir no trabalho de seu sucessor, mas seus 40 anos de trabalho nesse estado mexicano deixou uma marca que o novo bispo Felipe Arizmendi não pode alterar, particularmente o que o próprio Tatik chamava “a autonomia participativa” de clero e laicos, sob o risco de provocar “uma verdadeira sangria”, como advertiu o historiador Jean Meyer.
Como bispo da diocese de Chiapas, Samuel Ruiz desenvolveu uma intensa ação através do Comitê de Solidariedade com os Povos da América Latina, viajando a diversos países, com grupos, movimentos sociais cristãos e não cristãos. Uma de suas intervenções mais conhecidas foi em favor dos milhares de guatemaltecos que fugiram para o México no final dos anos 80 e início dos 90 para não serem massacrados pelo exército daquele país e seus esquadrões da morte, conhecidos como kaibiles.
Seu ativismo vinha de longe. Em agosto de 1976, apenas alguns dias após o assassinato do bispo de Rioja, monsenhor Enrique Angelelli, pela ditadura militar argentina, participa do Encontro de Bispos Latinoamericanos, realizado em Riobamba, Equador, e é preso pela ditadura militar desse país junto com outros 20 bispos, sacerdotes, teólogos e assessores, entre eles Adolfo Pérez Esquivel. Vinte e cinco anos depois desse episódio, o Nobel da Paz argentino apresentou a candidatura do bispo mexicano ao mesmo prêmio.
Em 16 de setembro de 2001, por ocasião de um aniversário da independência do México, Pérez Esquivel fez um discurso laudatório sobre Samuel Ruiz no Centro de Direitos Humanos de Nuremberg, que lhe outorgou naquele ano o Prêmio Internacional de Direitos Humanos, um dos tantos que o bispo emérito de Chiapas recebeu. Pérez Esquivel disse então que Samuel Ruiz era uma das “vozes proféticas que anunciam e denunciam a situação de violência e injustiças que vive a maioria dos povos latino-americanos. São as vozes dos despossuídos, dos sem voz que vão recuperando seu protagonismo histórico, o sentido da vida, da dignidade e esperança, na base do qual é possível construir um mundo mais justo e humano para todos”.
(Tradução: Katarina Peixoto / Agencia Carta Maior)