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Allan Robert P. J.
Muitas vezes ouvi alguém dizer que para avaliar a civilidade de um povo, bastaria observar como tal povo se comporta no trânsito. Geralmente a frase vem precedida de um “segundo a Ciência…” ou “segundo os cientistas…”, porque envolver a Ciência dá uma credibilidade pouco contestável. Desconheço a existência de qualquer estudo que possa ser considerado válido, mas devo admitir que faz sentido.
O típico motorista de Salvador não chega a ser presunçoso, mas tem um “quê” de arrogância, além de memória fotográfica. Pode dirigir a duzentos ou a dez por hora, mas é capaz de identificar todas as pessoas interessantes que cruzaram com ele. Ao encontrar um amigo, pára o carro no meio da rua para conversar e, talvez, combinar a cerveja do início de noite. Se o motorista seguinte decide buzinar, o primeiro colocará a cabeça para fora da janela e dirá – com o típico e alegre egocentrismo baiano: “Você não está vendo que EU estou parado aqui, não?”
Em Piacenza ainda não consegui me habituar a atravessar a rua sem medo, sobre a faixa de segurança. Eles param! Quanto menor o vilarejo, maior a preocupação no trânsito. Um corolário óbvio é que nas grandes cidades a situação é mais próxima da nossa realidade, enquanto a Lei de Murphy se aplica ao trânsito das grandes cidades do Sul. Na caótica Nápoles, por exemplo, o perigoso é estar fora de um carro, a pé, de moto ou bicicleta.
Uma experiência tão inútil quanto divertida é observar os garotos que passeiam pelas ruas de Salvador. Sozinhos ou em pequenos grupos, eles caminham pelas calçadas (andar no meio da rua em Salvador pode ser uma experiência única e definitiva) até encontrarem um automóvel estacionado com alguém dentro. Nesse caso – e somente nesse – passam a mão no carro ou dão pequenas batidinhas em tom provocatório. É como mexer com um cão acorrentado: se alguém reclama, eles não dão bola. Mas se o cão estica a corrente ou alguém desce do carro, correm divertidos.
Já por aqui a arrogância está nos pedestres: caminhar por algumas calçadas de Piacenza pode transformar-se numa experiência desagradável e ácida. Nos fins de tarde os pombos se recolhem nos beirais das casas (pombo não migra) e deixam o registro da presença deles sobre os pedestres. Talvez por esse motivo o piacentino prefira caminhar pela rua e olhar aos que buzinam ou aceleram como quem diz: “Você não está vendo que EU estou andando aqui, não?”
O problema, para os motoristas, é que o automóvel em Piacenza – ou pelo menos no centro da cidade – é uma anomalia. As ruas são estreitas e curtas, e foram projetadas para a passagem de carroças e tropas do antigo exército romano. A bicicleta é o meio mais apropriado e todo mundo tem. A legislação italiana também contribui para transformar a situação num verdadeiro exercício de autocontrole dos que são habilitados a guiar. Causar um acidente irá provocar enormes enxaquecas (no sentido figurado). Basta que o motorista ou um passageiro do outro carro alegue uma forte dor de cabeça (no sentido literal) ou dor no pescoço, como resultado do acidente, para que o médico do pronto-socorro lhe meta um colar ortopédico e o mande ficar quinze dias em casa. Pronto! O valor do seguro obrigatório vai para as estrelas. Atropelar um pedestre ou um ciclista, então, nem se fale! Perde-se a habilitação, o carro, a casa e a paz.
Por aqui os cães não costumam ser acorrentados, as crianças não têm o hábito de passar a mão nos carros e os motoristas param quando há um pedestre sobre a faixa de segurança. A arrogância dos passantes é coisa dos tempos de Colombo (que na realidade se chamava Cristoforo), mas somos todos pedestres em algum momento do dia, em Piacenza ou Salvador, e esta é uma condição que a existência dos pombos não nos permite esquecer.
Enquanto a Ciência se ocupar mais com o desenvolvimento dos carros que com os problemas do trânsito, poderemos contar só com a boa vontade e gentileza encontradas nos vilarejos, lugar de gente civilizada.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.