* Márcio Amêndola
Era o distante ano de 1975. Estava eu, com alguns amigos na porta da catedral de Assis, interior paulista; um deles, o Lilique (Luiz Henrique), que anos depois morreria de leucemia pouco antes de terminar a Universidade, uma pena. Na porta da igreja apenas meia dúzia de jovens alheios aos acontecimentos políticos nacionais, batendo papo após uma missa de meio de semana, aquela em que o público é pequeno, noite de verão, calor.
Naturalmente ficamos na praça da catedral, debaixo daqueles ipês brancos lindos, que dizem, um certo bispo mandou arrancar (!), sob o pretexto de que faziam muita sujeira (?) nas calçadas da catedral. O mesmo bispo, anos antes ou depois (maldita memória) mandou comprar fogos de artifício pra disparar rojões contra um bando de milhares de andorinhas que insistiam em migrar anualmente para os jardins do Palácio Episcopal (é verdade, os bispos moram em ‘Palácios Episcopais’ no interior paulista, nada ficando a dever à Santa Sé, aquele suntuoso palácio do nosso querido Papa Ratzinger).
Rojões disparados pelo fiel sacristão, milhares de andorinhas morreram, e milhares se espalharam por toda a cidade, em pânico. Não sei se a tática espanta-andorinha a lá ‘espanta Kadafi ou Sadam’ funcionou. O fato é que muita gente na cidade protestou contra o assassinato das pobres andorinhas que praticavam a heresia de cagar nos jardins do Palácio Episcopal!
“Polícia para quem precisa”
Mas voltando ao nosso tema, estávamos eu e meus amigos na porta da Igreja numa noite de verão, após a missa, por volta das 22 horas, quando uma viatura da Polícia Militar da cidade parou ao nosso lado. Desceram um cabo e um soldado, que do alto de suas ‘ALTORIDADES’ nos falaram de um tal de ‘toque de recolher’, que a gente nem sabia o que era. O cabo, chefe da patrulha, visivelmente alterado – será por causa do bafo de cachaça? – passou a nos agredir verbalmente, dando também alguns tapas e empurrões. Explicamos que éramos dos movimentos católicos Oásis e TLC, e que saímos da missa, mais nada. O policial interrompeu a conversa, olhou para Lilique, que abraçava sua irmã apavorada, e disse: – “Você aí vai comer esta putinha depois, seu safado?”. Lilique, indignado, disse que se tratava de sua irmã e exigia mais respeito. O PM respondeu com um sonoro bofetão na face branca e pálida do jovem, que ficou ainda mais indignado e sem ação. O soldado pegou no braço do chefe, que por um instante recuou.
Na sequência o policial mandou que todos saíssemos imediatamente da praça. – “Circulando, Circulando, bando de vagabundos filhos da puta”. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Saímos rapidamente do local. Peguei minha magrela (bicicleta em linguagem do interior) e entrei correndo pela rua do Cemitério, rumo à casa da Vovó Lalá (que Deus a tenha, se é que Ele existe). Percebi a luz do giroflex da viatura nas minhas costas, a uns 100 metros. Acelerei e ao chegar em casa, joguei a magrela por cima do muro e eu, idem, ficando ambos com algumas escoriações. Atrás do muro percebi a passagem da viatura do demônio, ameaçadora, assustadora…
Acordei para a existência de uma Ditadura Militar no Brasil após este episódio insólito, mas só seria definitivamente resgatado em meu senso crítico ao ser salvo pelo curso de Letras na Unesp de Assis, em plena luta pela Anistia, em 1979, mas isso é uma outra história…
Porque me lembrei desse episódio da catedral justamente hoje? Sei lá, talvez porque hoje seja 31 de março de 2011, aniversário de 47 anos daquele fatídico dia em que generais decidiram aplicar uma mentira de primeiro de abril no povo brasileiro. Talvez porque alguns generais de pijama e outros de caserna, na ativa de nosso glorioso Exército comandado pelo nosso querido Ministro da Defesa (de quem?) Nelson Jobim, decidiram voltar a falar da ‘gloriosa revolução’ que teria tirado o Brasil da ‘baderna’ e salvo nossas criancinhas de serem comidas pelos malvados comunistas.
Os tempos são outros, mas nem tanto assim, já que para o pensamento militar, a guerra (ao contrário da Revolução) é permanente. O preço da ‘liberdade’ deles é a eterna vigilância sobre nós, os ‘paisanos’. Mas será que são eles que vivem num mundo de conto de fadas bélico, ou somos nós que acreditamos existir realmente uma democracia neste mundão de deuses que permitem a morte de 50 mil jovens por ano (só no Brasil) por causas violentas, entre as quais a violência policial?
Não foram apenas aqueles 500 militantes de esquerda que foram assassinados na ditadura, e ponto. Somos todos assassinados, diariamente, com esta herança autoritária de um aparelho policial que está longe de representar apenas o lema ‘servir e proteger’. A verificar desastres como o de Eldorado dos Carajás, Corumbiara, da Greve da CSN, do massacre do Carandiru, chegamos a pensar que nosso ‘aparelho de segurança’ pública está mais para ‘servir e proteger a elite’ deste país, do que propriamente os cidadãos das periferias empobrecidas.
É preciso devolver o Estado para a proteção do interesse dos cidadãos, e não de grupos privilegiados. É preciso que a herança autoritária seja excluída de nossas fileiras policiais, para que estes de fato e de direito voltem a se legitimar como verdadeiros protetores de nossa segurança.
A vida segue, e ao menos, o episódio da catedral de Assis naquele distante ano de 1975 serviu para que meus olhos se abrissem e permanecessem abertos nestes últimos 35 anos. A despeito do desejo de alguns, espero que a mentira de primeiro de abril de 1964 (ou 31 de março, para quem preferir) nunca mais se repita em terras tupiniquins.
**Márcio Amêndola de Oliveira é Graduando em História pela Universidade de São Paulo (USP) [contextohistorico.blog.terra.com.br]; Coordenador de Documentação e Memória do Instituto Zequinha Barreto [www.zequinhabarreto.org.br]; Assessor de Comunicação da Câmara de Embu [www.cmembu.sp.gov.br]; Diretor do Site [www.fatoexpresso.com.br]
Pois é, Marcio. Conhecia a história por ter-me sido contada pelo saudoso Lilique numa das nossas constantes partidas de xadrez.
Você, como sempre, foi ao ponto: a contaminação co aparelho policial, até hoje, pelo autoritarismo que descamba para a barbárie.
E, no caso específico de SP, a força policial voltada quase exclusivamente para a defesa do patrimônio.
Grande abraço!