Allan Robert P. J.
Casou-se tarde. Quando nasceu o primeiro filho estava à beira dos quarenta, mas continuava com aquela ânsia de viver. Fazia tudo ao mesmo tempo e com pressa, o que deixava as pessoas à sua volta sempre em estado de alerta. Tinha o hábito de tomar chá diversas vezes ao dia e chegou a comprar um pequeno fogareiro que ficava sempre acesso aquecendo uma chaleira com água. Tomava chá, fumava, bebericava um copo de vinho e comia pão e queijo em pé, tudo ao mesmo tempo enquanto trabalhava na pequena loja de secos e molhados que abrira. Aos poucos, com o progresso do comércio, foi se especializando até transformar seu negócio em uma loja de calçados. Depois, vieram as pequenas filiais, as viagens constantes, o distanciamento do contato com a clientela e uma vida cada vez mais sem horários. Mal acompanhara o nascimento do segundo filho.
Naquela época usava-se o trem para viajar na pequena e pobre Itália, mas nenhum passageiro reclamava dos seus cigarros. Era um sinal dos tempos. Ele abrira lojas nas cidades litorâneas, mas continuava morando no alto da Toscana. Sentia-se um homem do interior, com valores conservadores. Mesmo assim, construíra sua casa em um ponto de onde se avista o mar. Falava pouco e fumava como um desesperado num tempo em que os cigarros com filtro ainda não existiam.
Nos feriados religiosos fazia questão de estar em casa e reunia toda a família para comemorarem juntos. Foi num almoço de Natal que ele fez a mais assombrosa declaração. A esposa, os dois filhos e noras e os cinco netos não estavam acostumados a ouvi-lo discursando e, de fato, o discurso foi muito curto:
“Sou muito orgulhoso de poder ter dado a vocês as oportunidades que eu não tive, de ver meu neto caçula começando a faculdade no mesmo ano em que o mais velho se diploma. Só se vive uma vez. O que somos hoje não irá se repetir e não teremos jamais a oportunidade de refazer o que deveríamos ter feito. Algumas opções são escolhas nossas; outras, não podemos decidir. Precisamos aceitar a vida como ela é e temos a obrigação de tentarmos ser felizes. Nossa família é composta por estas pessoas com quem dividimos esse almoço sagrado. Ter uma família numerosa é uma bênção. A partir de hoje ninguém mais deverá fingir que não sabe que o caçula desta família é homossexual, assim como ele não deverá mais ficar constrangido de sê-lo. Feliz Natal à nossa família!”
Disse isso e se levantou, foi até onde estava sentado o neto petrificado, abraçou-o e disse-lhe: “você é parte importante desta família”. O resto do dia ele passou na imensa sala com vista para o mar, conversando com os filhos e netos, não se importando com o constrangimento dos outros. Tirou o filtro do cigarro dos novos tempos, tocou o peito com a ponta dos dedos e esclareceu que o filtro faz mal. Tomou chá, vinho e comeu fatias de gorgonzola enquanto as mulheres serviam bolos, tortas e panetone.
Com os anos, vieram os problemas. O coração dava sinais de cansaço, a respiração se tornava mais difícil e o envolvimento com os negócios o estressava cada vez mais. Depois da morte da mulher a vida quase o deixou de vez. Foi obrigado a se aposentar e acabou internado. Estava com noventa anos. Os médicos informaram que não havia mais nada a ser feito. A deficiência cardio-respiratória era fatal naquela idade e a melhor coisa era levá-lo para morrer em casa. Ele convocou filhos e netos para informar que queria ser transferido para um asilo, onde gente especializada se ocuparia dele e que preferia não causar transtornos à família. De nada adiantaram os protestos. Fez apenas uma exigência: queria um quarto com uma varanda com vista para o mar.
Todos os dias alguém o visita. Ele convenceu o pessoal do asilo a fazer vista grossa aos cigarros e ao vinho que lhe trazem. Afinal, estava mesmo para morrer. Que fosse ao menos com um pouco de dignidade e prazer. Verão ou inverno, todos os dias às cinco da tarde alguém o leva de cadeira de rodas para a varanda, onde ele recebe suas visitas, fuma seus cigarros com vinho, chá e fatias de gorgonzola. Fala cada vez menos, apenas umas poucas palavras roucas, mas sorri quando chega alguém da família que ele reconhece e trata sempre pelo nome. Dias atrás, um dos bisnetos levou-lhe as fotos do casamento e informou-lhe que o mais novo representante da família está para nascer. Ele sorriu e, com gestos lentos, pegou um cigarro, tirou o filtro, bateu com a ponta dos dedos no peito e balançou a cabeça, antes de acendê-lo. O bisneto concordou: “eu sei: o filtro faz mal, vô.” Ao que ele retrucou sorrindo: “bisavô. Eu sou teu bisavô”.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.