Vitor da Trindade
Acordei de madrugada, ouvi o som de uma freada e batida entre dois automóveis. Susto!! Levantei e não vi nada, mas não consegui dormir de novo. Fiquei pensando em outras coisas e me lembrei.
Lembrei-me de situações em que vi pessoas sofrendo ataques de racismo, e de mim mesmo sendo vítima de situações em que o racismo foi quem criou constrangimento e de como lidei nessas diferentes situações de formas diferentes, me defendendo, sorrindo, brigando.
Somente depois de velho, perdi o medo de chamar a polícia, de fazer valer meus direitos, e ainda até hoje, não tive coragem de finalizar e levar a pessoa à Justiça.
Percebi que esses ataques são sempre em momentos que nossa guarda natural, nosso Exu, nosso Ogum, nosso Anjo da Guarda, está descansando depois de alguma grande luta, entre o bem e o mal, a saúde e a doença, entre o medo e a coragem, entre a sabedoria e a ignorância, entre a cultura e o conhecimento, e até mesmo entre os certos e os errados, e, neste momento, no momento que você diz: – ‘Acabou, vou ter uma folga’, e relaxa. Aí é que entra algum espírito de discórdia, para deixar esses guerreiros novamente alertas e obrigar-lhes a retomar sua luta incansável em busca de paz e harmonia.
Se em nossas vidas estivemos em semanas de trabalho ininterrupto, se estivemos por dias doentes, se qualquer tipo de guerra de nosso cotidiano tenha nos feito gastar muita energia, e então precisamos respirar, para retomar ao cotidiano com força, disposição e habilidade, nesse momento o racista ataca.
Quando voltei com minha mãe da homenagem do Presidente Lula ao meu avô (Solano Trindade), por exemplo, de como o Presidente do BNP Paribas achou uma ousadia dois pretos estarem na fila de VIPs no aeroporto, ou depois de uma tournê que fiz na Europa, quando fui comprar uma meia e fui cercado pelos donos de loja, e se não chamasse a Polícia, não sei o que aconteceria; quando minha mãe esteve convalescendo de uma doença, foi descansar num restaurante, para não ter que esquentar com o que cozinhar, e uma louca a acusou de ter sido roubada por ela; sempre situações de pós-estresse.
Concluí que somos negros orgulhosos, que andamos de cabeça erguida, e entramos pela porta da frente de onde quisermos, pela riqueza de nossa herança cultural, muito mais do que nosso poder financeiro, e vamos às vezes a lugares em que as pessoas não nos querem e tem que engolir.
Pensei nas pessoas negras que não tem nossas posses, mais humildes, acostumadas a receber ordens e seguir os padrões que os ensinamentos da cadeia hereditária e da grade escolar e outras metáforas muito bem percebidas pelo poeta Allan da Rosam, que promovem, buscando manter os diferenciados, facebookamente falando, em seus ‘devidos lugares’.
A ideia geral é de que pessoas negras, independente de suas vestes, e lugares em que estão, devem sempre estar olhando para a frente, e parecendo altivas, para que não sobrem oportunidades aos racistas de mostrarem suas garras, de tentarem provar que deveriam ser superiores, e que por alguma razão estamos em lugar errado. Isso irrita tanto ao racista, como o assusta, previne-se, toma cuidado, pensa: – “Este vai saber se defender, chamar a justiça, usar de violência”.
Será que é assim também com as pessoas brancas? Sempre que elas vão às lojas, estando bem vestidas, com dinheiro, será que elas recebem maus tratos? Nos shoppings, nos restaurantes? Não digo nos ‘exclusives’, nos ‘first classes’, mas nos lugares comuns da classe média, quase pobre ou quase rica, parafraseando Caetano Veloso, que de quase ricas desprezam os pobres ou quase pobres que querem ser tratados como ricos ou quase ricos? Acredito que não!!! Acredito que o racismo ainda é o ponto principal, que o preconceito de classe existe, mas ainda se subpõe ao racismo, que está tão dentro de nossa sociedade ainda escravista.
Por outro lado, estou de qualquer forma feliz de haver um novo pensamento governamental de melhorar o até aqui, do racismo. De se fazer cumprir leis de educação racial, de democratização das diferenças, de ver mais blacks, rastas e bubus nas ruas de São Paulo, Rio e outras grandes cidades do Brasil e dos lugares que tenho conhecido. De todos terem informação de atos que podem ser racistas, e poderem tomar, se quiserem ou perceberem, uma atitude, para si e para os outros.
Nao se enganem os negros e brancos que pensam que nada mudou, não se enganem os que pensam que Solano e Abdias lutaram em vão, não se enganem aqueles que acham que não houve resultados. Eles estão aí, é só a gente não desistir das cotas, comprar produtos de empresários negros honestos, lermos livros bons de bons escritores negros, e trançarmos nossos cabelos, ou alisá-los, ou cortarmos carecas, ou pintarmos de qualquer cor que quisermos, se nos sentirmos mais etnizados quando nos olharmos em nosso espelho.
Visitemos, oremos e respeitemos os Orixás e os Ancestrais, independentemente de nossas religiões pessoais, e continuemos a nos dizer ‘oi’, nos cumprimentarmos, onde nos encontremos, nos reconhecendo e afirmando como negros. A luta apenas começou e estamos, por enquanto, vencendo…
Embu das artes 04 e 05 de Julho 2011. (postado em 8/7)
*Vitor da Trindade tem 54 anos, é compositor e percussionista, tem 04 discos próprios gravados, vencedor do Premio Cultural Petrobras 2005, ex-professor da Landesmusikakademie de Berlin, Groove Zentrum fur Perkussion e Musikschule Schonenberg na Alemanha, já se apresentou em quatro continentes com o trio Revista do Samba, com lançamento do quinto CD, Revista Hortência do Samba, co-produção Brasil-França, previsto para março de 2011 em Marseille, Paris, Berlin e São Paulo. É professor de música e vice-presidente do Teatro Popular Solano Trindade.
VITOR !!!
Belo texto !!!
Copiando no meu FB.
Beijo
Hoje deu folga p visitar o Site!!!
Muito coerente!!!Obrigado pela dica!!!
Muito bom que mais pessoas brancas, e melhor ainda, que sejam meus amigos, que se informaram e informam, sobre o momento de descoberta do outro em nosso pais. Ainda que vc esteja fora, que é o melhor lugar para se ver o dentro!!!
Axé!!!!
Vitor,
Voltei para deixar o link da série de textos sobre racismo do Alex Castro (o blog dele estava off line). Está muito interessante e é para folhear com calma:
http://www.interney.net/blogs/lll/2010/10/23/racismo_alex_castro
Vitor,
O racismo é muito mais enraizado do que imaginamos. Lembro dos mulatos de Salvador que se auto-intitulam “morenos” e recebem a desaprovação dos turistas. Quer dizer, branco pode tomar sol pra ficar preto, mas o Michael Jackson não podia querer ficar branco. Minha cabeça é pequena demais para entender julgamentos e preconceitos.
Lembro, também, de alguém me chamando a atenção em voz baixa por eu tratar a sua mãe de Tia Raquel. Eu o mandei tomar no cú, que a tia era minha. Em voz alta.
Onde moramos existe um racismo mais xenófobo: eles não gostam de nenhum estrangeiro, sem distinções. Nem chega a ser um consolo saber que negros, brancos e mestiços são tratados da mesma forma, pois o desprezo não chega a ser um tratamento.
Tem um cara que está escrevendo uma série interessante sobre racismo, onde ele confessa o sentimento arraigado, difícil de identificar e constrangedor, contra o qual ele luta. Vale a pena dar uma olhada. Assim que o blog do cara voltar ao ar, volto aqui para deixar o link.
Abração