Allan Robert P. J.
Quando morava em Salvador, conheci alguns bairros da periferia. Ou daquilo que se convencionou chamar de periferia, pois em Salvador, assim como no Rio, não há muita diferença entre centro e periferia. Existem bairros ricos, bairros pobres, ricos que moram em bairros pobres e vice-versa. O bairro em questão não foge à regra de muitos outros bairros de Salvador: começou como uma invasão, foi protegido pelo poder político em período eleitoral, recebeu o status oficial de bairro ganhando algum nome de santo (porque nenhum político gostaria de ver o próprio nome ou de algum parente ligado àquela miséria) e, em seguida, solenemente esquecido por todos. Mesmo desconhecendo o atual nome “oficial” de Alagados (que nasceu como Vila Ruy Barbosa), acredito que ele não chegou a ser adotado, confirmando outra característica de Salvador de apelidar ruas e lugares com a primeira piada do gaiato de plantão.
(Fazendo uso do meu hábito prolixo, esclareço que, apesar da legislação contrária, existe sim um costume de batizar ruas, praças e avenidas com o nome de políticos ainda vivos. No início dos anos oitenta, conheci Ilhabela e a sua Avenida Jânio Quadros. O fato chamou a minha atenção, pois já conhecia a tal lei. Anos depois, morando em Salvador, pude caminhar por diversas vias com o nome de Antônio Carlos Magalhães, à época, vivo e végeto. Portanto, que ninguém estranhe a minha observação sobre doar, em vida, o próprio nome a vias ou bairros do parágrafo anterior.)
Alagados possuía uma característica que se encontra com maior facilidade nas comunidades mais necessitadas: a solidariedade. Quando o distribuidor local de cerveja decidiu não mais entregar o produto de forma pulverizada, mas concentrando em um único bar todos os pedidos, os envolvidos se reuniram e decidiram que somente os antigos clientes poderiam continuar comprando o produto pelo preço do distribuidor, permitindo, assim, que aqueles que já vendiam a cerveja gelada na janela da própria casa continuassem a fazê-lo. E assim foi.
Construídas sobre o mar, as palafitas tinham a desvantagem de não possuir água encanada, eletricidade ou rede de esgoto. Vez ou outra, uma notícia perdida no jornal anunciava a morte de outra criança caída das palafitas, o que não chegava a ser notícia de verdade. E era essa a maior desvantagem do bairro, as pessoas que moravam ali não tinham opção. Pior: eram estigmatizadas até mesmo pelos moradores do bairro de Coutos, que é o nome do bairro, do outro lado da avenida, sobre a terra firme. Coutos era um bairro miserável. Alagados, a miséria dentro da miséria.
Num outro cenário, a necessidade de sobreviver às invasões bárbaras colaborou na decisão de construir palafitas sobre as pequenas ilhas separadas por canais e pela laguna. Aos poucos, os espaços sobre a terra firme se reduziram e as construções avançaram sobre os canais e sobre a laguna salgada. A pequena comunidade transformou-se em uma potência marítima que chegou a dominar o comércio na velha Europa. Hoje, Veneza é uma potência do turismo.
Apesar de preferir a Veneza dos filmes, impressionou-me a arquitetura de ruelas estreitíssimas do centro; a necessidade de manutenção e substituição periódica das madeiras submersas que sustentam algumas construções; os caminhões sem roda que transportam todo tipo de material pelos canais (inclusive areia e material de construção a granel); a multidão que se transforma em um imenso polvo, espalhando seus imensos tentáculos por todos os cantos; a beleza quase invisível, sufocada pelo calor e umidade insuportáveis, barracas de camelôs, turistas, flashes, pombos e gaivotas.
Em Veneza é possível alugar bicicletas, mas eu desaconselho. Falta espaço entre a multidão e sobram pontes arcadas a serem atravessadas. Um passeio de gôndola custa cem euros. São quarenta minutos entre os canais menores e o Grande Canal, mas o sorriso irônico dos pedestres irá lhe fazer crer no maior mico da sua vida. Melhor deixar pra lá. Lanchas fazem todo o percurso de Veneza e entre as ilhas, mas é melhor comprar um mapa e decidir antes o que visitar, pois as cabines das lanchas são sufocantes no verão.
A famosa Piazza San Marco com os cafés dos cartões postais tem muitos outros atrativos, calor e multidão. Outra coisa muito famosa na Piazza San Marco são os preços dos cafés. Ao contrário do que se vê nas imagens dos cartões, as mesas ao ar livre estavam vazias. Mostrei e esclareci uma curiosidade às minhas filhas: os garçons que ali trabalham pagam para fazê-lo. Cada um deles adquire uma taxa diária (que muda conforme a estação) que lhes dá direito de atender às mesas, fazendo jus aos dez por cento do serviço e às gorjetas. No fim do dia sempre levam para casa muito mais do que pagaram. Por esse motivo, os garçons dos cafés da Piazza San Marco são, na grande maioria, idosos. Eles não vendem o próprio lugar por dinheiro nenhum!
Mas em Veneza também existe um tipo de solidariedade. Os chineses se ajudam mutuamente e começam a tomar conta dos pequenos cafés, lojas de souvenir, lojas de roupas e calçados. Em breve, o mandarim será a segunda língua oficial de Veneza, sinais postivos da globalização.
Um amigo mais atento poderia ter notado que falei de Alagados no passado, como se não existisse mais. Para falar de Veneza puxei-a do passado, falei do presente e sugeri um futuro. Foi proposital: espero que o bairro dos Alagados não exista mais, que finalmente os nossos governantes tenham decidido ser solidários, eles também, e tenham cumprido velhas promessas. Espero que não exista mais a possibilidade de uma criança morrer entre os troncos velhos das palafitas, no esgoto social da pobreza daquele lugar. É uma ilusão, eu sei. Enquanto Veneza é mais bela nos filmes, Alagados, em comum, possui somente o mau cheiro. E, apesar do espírito positivo das pessoas que moram lá, não há Felini que faça belo Alagados.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.