Allan Robert P. J.
Giovanni é uma daquelas pessoas simples, mas especiais. Fala pouco e come muito. Pra falar a verdade, há muito que não saímos juntos. Ele está fazendo uma dieta para emagrecer e tentar livrar-se de um mal que herdou da mãe: o estômago dilata até começar a pressionar outros órgãos. Quando atinge esse ponto, precisa da ajuda de remédios para fazê-lo voltar ao normal, sob risco de impedir o coração de funcionar. Deve ter um nome médico, um termo técnico, mas prefiro nem saber. Já questionei porque ele não para de comer antes de atingir tal limite, mas como presidente honorário da confraria Santo Cibus (“santo alimento”, com direito a fardão, chapéu e um enorme babador com um garfo bordado), ele argumenta não se conter diante de um prato de qualquer coisa.
Certa vez fomos ao mercado de Piacenza, onde é comercializada a maioria dos produtos agrícolas que abastecem os supermercados e quitandas da região. Pouco antes das nove da manhã fazia um frio de assustar pingüin. Entramos no bar do mercado para um café e encontramos um fornecedor que fazia o seu lanche: um homem de seus sessenta e cinco, setenta anos, forte, alto e que deveria pesar uns cento e vinte quilos. Cumprimentamo-nos e Giovanni, rindo, alertou-o sobre o papel alumínio que ele distraidamente comia junto com a fatia de gorgonzola. O sujeito deu um bom gole do vinho tinto no copo e respondeu no mesmo tom: “Ho pagato pure la carta stagnola!” (Eu paguei pelo papel alumínio, também!).
Takeo (na realidade Eduardo Kenji Takebayashi) também fala pouco, mas esse come pouco. Além de típico pintor japonês, produzindo desenhos minimalistas que me impressionam ainda hoje, foi ele quem me ensinou algumas curiosidades da língua japonesa. Foi ele, também, quem primeiro me falou sobre macrobiótica, que pratiquei por um breve período. No livro “Sois Todos Sanpakus” colhi as primeiras informações. A moda – mais que um estilo de vida – que se espalhou por Sampa naquela época, tornava tudo mais fácil. Mas a experiência não durou mais que alguns meses: Eu não resistia ao perfume do churrasco que cobria o ar nos fins-de-semana.
San (três) + paku (branco), sanpaku (três brancos) é uma referência à íris que não toca a parte inferior do olho, formando três partes brancas, o que alerta para uma alimentação inadequada. Desde então aprendi a controlar no espelho a qualidade da minha alimentação. Às vezes tenho a impressão de que o olho ficou todo branco, então lembro da degustação dos novos salames e queijos, desvio o olhar para a lâmina e termino logo de fazer a barba. Além do bem-estar e da calma que a macrobiótica proporciona, me chamava a atenção a completa inutilidade do papel higiênico.
Sexta e sábado são dias de comer cedo, em Salvador. Levanta-se às cinco, cinco e meia (geralmente acordado por algum amigo voltando da noitada) e come-se no mercado de Itapoã, ou no Rio Vermelho. Aliás, endereços não faltam, pois toda a cidade tem esse hábito. É óbvio que os mercados não fecham nunca e são sempre uma opção dos notívagos, inclusive nos outros dias, mas até o meu aparelho digestivo tem limites. Comer um sarapatel, uma rabada, ou um prato de mocotó às seis da manhã, acompanhado de uma cerveja estupidamente gelada, permite ter o resto do dia livre de compromissos para almoçar, pausa para lanchinhos ou beliscar tira-gostos. Também dá uma preguiça danada, que os turistas acham pitoresco e batizaram de “malemolência baiana”.
Aqui, não. Aqui é diferente. Caso você tenha decidido vir à Itália, certifique-se antes do café da manhã oferecido pelo hotel em que ficará hospedado. Mais que uma xícara de café com leite – o capuccino – e uma brioche pode ser impossível conseguir pela manhã. Como a maioria das lanchonetes abre mais tarde, por volta das dez, uma opção seria ir à padaria e comprar pão e um pouco de queijo e presunto. Mas coma escondido: eles se impressionam fácil com esse tipo de coisa. E tem memória curta: antigamente por estas bandas acordavam no meio da noite e faziam uma ceia com os alimentos mais pesados e gordurosos. Depois, voltavam para a cama e dormiam até a metade da manhã. Só quem fosse miserável demais e não tinha o que comer de madrugada estaria acordado logo cedo.
Hoje a dieta mediterrânea é alardeada como aquela ideal. Baseada no consumo de pouca massa, verduras e legumes em abundância, azeite de oliva (na Bahia se diz “azeite doce”, para diferenciar daquele outro, o azeite de dendê), peixe e frutas, deixa pouco espaço para os excessos à mesa. Exceção feita apenas a um copo de vinho tinto, que chega a ser benéfico. Apesar de tudo, os fast foods se multiplicam e a obesidade começa a ser discutida. Culpa da TV ou da nova realidade econômica que obriga às mães a trabalharem, transcurando os cuidados com a casa? Podemos considerar como uma pequena taxa a pagar pelos possíveis benefícios da globalização?
Os italianos são obstinados. A dieta mediterrânea realmente é muito saudável. E é de pequeno que se torce o pepino. Daí que eles adotaram a dieta nas escolas. Cada dia um cardápio diferente, respeitando e consumindo os vegetais da estação, pratos típicos da região e frutas produzidas localmente. Para vencer a resistência natural de toda criança por vegetais, dividem as classes em mesas de cinco ou seis crianças. Cada uma tem um lugar fixo, com o mesmo grupo de amigos por todo o ano. Todos precisam comer de tudo: primeiro prato, verdura, segundo prato e fruta, todos os dias. Caso contrário a mesa não ganha a estrela do mês, colocada em um quadro de avisos ou algo parecido. Acaba estimulando o espírito de equipe, além de ter ensinado às minhas filhas a gostarem de verduras. As escolas não possuem uma cantina e proíbem o consumo de guloseimas industrializadas, permitindo apenas sanduíches e frutas como merenda. Coca-cola, nem pensar!
Talvez resida nesse hábito – das escolas – a tradição de reunir-se com amigos para almoçar ou jantar. Se for num domingo, melhor! É possível (e muito comum) alongar o almoço até a hora do jantar e passar o dia inteiro comendo. Depois, não há dieta mediterrânea que consiga colocar os olhos no lugar.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.