Lei que configura como criminoso o empregador que impõe condições degradantes de trabalho é de 1940, mas apenas em 2003 ela passou a indicar condição análoga à de escravo
Muitos trabalhadores no Brasil se encontram em situações que condizem com trabalho escravo, mas uma questão cultural dificulta a identificação do problema. Muitas vezes, a prática continua associada a um imaginário de homens acorrentados um a um, como no século 19, sem condição mínima de sobrevivência. Os tempos mudaram. Entretanto, a situação de trabalho degradante ainda é presente na rotina de muitos trabalhadores. As leis e as fiscalizações no Brasil, apesar do avanço, ainda deixam brechas.
O crime de escravidão, de acordo com o código penal, é definido como “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Desde então, inúmeros foram os casos em que trabalhadores foram resgatados dessas condições, muitas vezes, desumanas e cruéis. Do ano de 1995 até 2010, foram resgatados no Brasil 38.769 trabalhadores em situação de trabalho degradante.
Segundo Ruth Vilela, ex-secretária de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) por muito tempo chamou a atenção do Brasil pelo fato de ainda sustentar situações de trabalho exaustivo, mas, sempre se dava uma desculpa dizendo que havia dificuldades na fiscalização. “O problema existia, o país estava sendo cobrado, criticado e tal, e a gente precisa de uma solução”, recorda. Por essa razão, foi idealizado em 1995 um grupo especial que entraria com a função exclusiva de investigar e resgatar trabalhadores que estivessem em condições análogas às de escravo.
Para auditores fiscais do trabalho, profissionais que compõem o grupo de fiscalização e resgate, um dos principais entraves na detecção de trabalho escravo é a concepção da sociedade, sob aspectos culturais. Pesam a impressão de que inexiste o trabalho escravo na modernidade e o desconhecimento de que a legislação garante direitos a todos os trabalhadores. “A situação de trabalho degradante é clara, é quando se coloca em grau mais baixo as condições de trabalho, e isso tem relação direta com o desrepeito à dignidade do trabalhador”, afirma Guilherme Moreira, chefe da divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo.
Segundo Moreira, o grupo móvel de auditores acompanha as discussões do Ministério do Trabalho e de órgãos competentes sobre até que ponto as realidades culturais se sobrepõem à concepção da legislação trabalhista, evidenciando ou não a situação de trabalho degradante.
“É permitido na legislação trabalhista que em algumas regiões os trabalhadores não durmam em cama, e sim em redes. Pois é normal em casas da região Nordeste que as pessoas durmam em redes. Isso é uma variável cultural. Agora dizer que é normal que 20 trabalhadores fiquem alojados num barraco de palha sem condições de trabalho, isso não é”, exemplifica o coordenador.
Interpretação da Lei
Desde 1940, o Brasil conta com uma lei que configura como criminoso o empregador que mantém a seu serviço trabalhadores em condições degradantes. Mas apenas em 2003 a lei foi modificada, indicando as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo.
Para Ruth Vilela, o artigo 149, que foi modificado na ocasião, antes dava margem a uma interpretação genérica. A atual redação da lei fez com que ao longo dos últimos anos, com um número crescente das ações na Justiça envolvendo esse tipo de crime, a discussão jurídica se desenvolvesse. “Hoje, por mais que se levantem dúvidas sobre a subjetividade da aplicação da lei, muitos trabalhos científicos podem nortear a interpretação do caso”, considera Ruth Vilela.
Um dos casos emblemáticos – e que voltou a colocar em discussão a interpretação das leis trabalhistas – ocorreu no município de Naviraí, em Mato Grosso do Sul, em julho deste ano, quando um grupo móvel de fiscalização resgatou 827 cortadores de cana, sendo 285 indígenas e 542 migrantes de Minas Gerais e da região Nordeste, da fazenda da empresa Infinity. Entre idas e vindas nas interpretações, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), João Oreste Dalazen, decidiu dar razão à libertação dos trabalhadores.
Guilherme Moreira considera que a interpretação da lei é um exercício do direito de defesa do infrator e, segundo ele, se isso levar à “lista suja” – relação de nomes e empresas que ficam impossibilitadas de obter financiamento em instituições públicas ou privadas – é, na verdade, resultado da postura do próprio empregador, e não uma decisão subjetiva do ministério.
Pressão
Lilian Rezende, auditora fiscal do trabalho da superintendência do ministério em Santa Catarina, conta que os grupos que não fazem parte do grupo móvel nacional, por causa de piores condições de estrutura, como o constante acompanhamento do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, são mais suscetíveis a sofrer pressão por parte dos empregadores.
Segundo ela, naquele estado, por haver intensa atividade madeireira e de extração de erva mate, os auditores realizam inspeções espontâneas, que não partem de denúncias, e que, na maioria das vezes, não se sabe se encontrarão condições que necessitem o resgate. “A gente sabe quais épocas há intensa extração. A cada visita, a gente seguia um caminhão e, quando chegávamos, encontrávamos condição degradante”, pontua.
A auditora afirma que apenas uma vez o trabalho foi feito sem a participação da Polícia Federal. Foi justamente o caso em que o grupo coordenado por ela foi ameaçado.”Eu fiz um ofício à Polícia Federal, mas naquela semana eles tinham outro projeto, foi quando ameaçaram colocar fogo no carro e a prefeita da cidade nos chamou pedindo que a gente fosse embora”, relembra Lilian.
“Atualmente todos têm respeitado bastante nosso trabalho. Algo que me surpreendeu porque a gente tem mexido com grandes empresas de madeira e erva-mate, que têm toda uma estrutura e pedem que a gente não autue ou que mude a legislação, mas violência não há.”
(Por: Virginia Toledo, Rede Brasil Atual)