Vitor Trindade
Eu tive um sonho… Não foi o mesmo sonho que Martin Luther King, aquele lindo sonho, que ainda estamos na esperança de se ver realizar. Meu sonho foi dentro de casa, como um quadrinho de revista, de grandes heróis fascistas de capa e porrada dos fanzines americanos. Capitão América, Iron Man, Duros de Matar I, II, III e IV, pois adoro filmes de ação.
No meu tempo, os heróis eram, além de fascistas, racistas, Mandrake e Lothar, Fantasma e Guran, Zorro e Tonto, Lanterna Verde e Kato. Sempre um herói branco e inteligente, acompanhado de um capacho meio grosso e violento. Só o homossexualismo era um pouco mais liberado, mulher não tinha vez nos quadrinhos, exceção à Mulher Maravilha, Xena e Barbarela, sempre muito gostosas e copiando os desenhos de catecismos, motivação nas mãos da garotada. Focos muito machistas, mas era a presença da mulher…
Meu sonho sonhou a deusa Oxum, dourada, linda como minha esposa, rica de sensualidade, inteligência e sorrindo com todos os dentes brancos, contrastando com sua negritude vintenovembrista. Ela estava alegre neste momento conversando com o Senhor Ogum, que se regozijava de ter vencido batalhas que mesmo o Rei de Oyo se recusara a fazer com toda sua opulência. Esse Deus se sabia que era um grande apaixonado da rainha da coqueteria, e que tinha lá certa inveja do Senhor do Trovão, que era marido daquela que ele olhava cheio de desejo. Pois é! Estava Ogum a conversar com ela e de repente na Terra um Alabe dobrou seu Rum chamando todos ao Aye para uma festa em homenagem a Oxalá, o grande Deus Pai de todos os Orixás. Chamado irrecusável, mesmo que a festa do Velho não fosse lá essas coisas, comparada às comemorações do Deus Xangô e de suas consortes Oya e Oxum.
Atendendo às complicadas frases do Atabaque Maior, chefe da Orquestra, que com sua voz grave, comanda Pi, Le e Gan, os deuses chegaram ao Xire, logo depois da Hamunha, enquanto as Yaôs se abaixavam pra entrada de mais um babalorixá, elegantemente vestido com roupas de sua tradição nas cores daquele em que seu Ori foi assentado. Ogum, Adjo e Mariô!!!! Cantou o dono da casa, iniciando com carinho a festa do comedor de inhame pilado.
A casa foi enchendo, nos agueres, Bravuns e Satos, enquanto ao lado, os Orixás aguardavam o adarrum que lhes abriria a passagem para mostrarem sua dança odara e encherem de axé aqueles humanos que também vieram à festa, trazendo problemas caseiros, amorosos, criminais, e também pessoas que vinham com sua vontade de ajudar, de melhorar, mais os curiosos e um monte de gente que vinha pela festa mesmo, para comer as carnes dos animais sacrificados em honra dos Santos do Dia. Carne na comunidade não era lá tão comum…
Era uma grande festa!!! Mesmo que o zelador de santo dissesse que o Orixá gostava de silêncio, que era proibido todo e qualquer Otim, e que o Aluá era a bebida da noite. Todos estavam lá, dançou Ogum, Oxóssi, Obaluaye, Ossaim, as Yabás e no final todos vieram ver Airá carregando seu pai sob o Uala, enquanto um pombo branco que foi solto para a liberdade vinha sentar-se na ponta da vara que segurava no alto o pano branco que cobria o cortejo. O povo se arrepiou e aplaudiu, era a confirmação da força do Ilê, era a prova de que os Orixás aceitavam de coração o presente oferecido pelos que neles acreditavam, Alafia!!!!!
Ibi e Unlo, os Orixás se preparavam para partir, era a hora dos humanos, com suas fraquezas, seus anseios, suas lutas, era hora das pessoas se sentarem e trocarem idéias sobre suas diginas, suas curas, seus Ilês e diferenças, de namorarem e iniciarem casamentos, de discutirem os problemas da comunidade, do Povo de Santo, de organizarem o afoxé que vai abrir o Carnaval mês que vem, de comerem arroz branco com galinha, cabrito assado, e tomarem o rumo de suas casas quando o sol raiar, quando iniciarem os ônibus de linha para os que vieram de longe. E comer e quendar, porque em festa de oxalá, o samba não tem muita abertura, apesar de ter sempre alguém disposto a começar.
Foi uma linda festa, Epa Baba!!! Comentam os Orixás em volta da mesa de Oxalá, comendo dos axes preparados em sua honra. Como sempre Xangô em sua realeza, reclama da falta de tempero, Iansan e Oxum concordam, coisa que raramente acontece entre essas duas, concordarem; até Obá que fica de canto balança a cabeça. Mais foi Festa de Oxalá, do pacificador, do pai, dia de se esquecerem de brigas e discórdias.
Meu sonho foi esse, acordei pensando que o sonho do Reverendo Martin, podia entrar na cabeça das pessoas, cristãos ortodoxos, como King, que deu sua vida para que as pessoas compreendessem as diferenças inerentes a todo humano, que compreendessem que nem mesmo os Orixás são padrões repetidos, e que tem pontos de vista díspares e únicos, mas que percebem dos outros o que lhes é peculiar e vivem partilhando seus quereres com os seres dos que se não lhes é espelho, como diz Caetano Veloso.
Se a inquisição recomeçar, como parece que vai acontecer, as pessoas não vão poder ir a nenhum lugar sem medo. Pois o medo de ser assaltado, roubado, não é o mesmo medo do não poder acreditar, de não poder ser, este medo, que tira toda liberdade, transforma em animais sanguinários todo pacífico cordeiro, cada covarde vira herói, cada coragem aflora em todos que querem simplesmente viver.
O sistema mentiu, a Imprensa mentiu, a educação formal contemporânea mentiu, a necessidade ideológica sobre a preservação dos animais, veio depois do Candomblé. Cortes como o que foram feitos na minha pele, para que eu morresse e nascesse de novo, sangues que sangram sobre os Oris, em número individual, não podem ser contados na mesma conta de todos os búfalos, elefantes, leões, araras, pacas, mincs, canários e outros animais em extinção, que foram mortos por ancestrais brancos e cristãos, em expedições de caça esportiva, matar por matar, não foi por sobrevivência ou cura religiosa, pois se o fosse, todos estes animais passeariam pelo grande espaço livre que ainda temos em nosso planeta. Da mesma forma, tenho que incluir nesta lista, a quase total extinção de Seres Humanos, como os aborígenes do Continente Americano, Africano e Oceânico.
De verdade, o Povo de Santo não faz xixi na água; reverencia o Mar e o Rio, e outros deuses da natureza, como o Vento, A Floresta, e também todos os outros seres vivos. Não nos importunem com a mentira de que sacrificamos a vida, quando trocamos nosso sangue com os animais, como faziam entre si os Nobres Cavaleiros da Idade Média, pois desde os primórdios, inclusive no Reino Animal, a caça é dividida entre as pessoas da família, de toda a tribo, de toda a aldeia, de todos os povos de todas as cores, de todas as línguas.
E é isso que fazemos, dividimos o produto de nossa caça, entre os fiéis, os não fiéis e os deuses em que acreditamos. Ao invés disto, poderíamos ir a um restaurante chique discutir intelectualidades e comer Coq au Vin, Escargot, Bife ao Madeira, Sopa de Tartaruga, Barbatana de Tubarão, Truta com Amêndoas, Costela de Ripa, ou poderíamos também comer na mesma mesa da churrascaria em que comemorariam seus defensores, do sancionamento dessa lei injusta e anticonstitucional pela proibição do sacrifício de animais, mastigando pedaços gordurosos de picanha, filé e linguicinhas. É muita hipocrisia, ladies and gentlemen!!!!! Por favor, sonhem!!!
Sei que como meus contemporâneos, seus heróis foram fascistas como os meus. Eles dizem as mesmas mentiras que ouvi, e hoje o inimigo, como diz o Capitão Nascimento, é outro. O ano é 2011, nós humanos crescemos e deveríamos evoluir, temos nossos próprios critérios, reanalisem-se, revejam o que aprendemos em nossos dias ultrapassados de escola, aprendam com seus filhos e lembrem se de seus pais.
Façam valer nosso direito de voto. Parem de tentar nos melhorar por sua obliquidade, deixem-nos acreditar no que acreditamos, e ritualizarmo-nos da forma que achamos certo, pois essa religião representa nossa dignidade, e nos manteve vivos e íntegros nos mais de 500 anos de país escravagista, contra o qual temos que lutar cotidianamente, contando inclusive com a sua ajuda em busca de uma democracia real e plena.
Vamos botar na mesa o prato real, que é o Racismo e a Intolerância Religiosa. Vamos lutar juntos para realmente mudar o País e o Mundo, reequilibrando a Terra através do diálogo e o respeito entre povos e pensamentos.
Deus Ama O Povo dos Orixás, somos ecologistas desde o início dos tempos, amamo-nos uns aos outros e aos outrem, e nossa porta sempre foi aberta a quem nos visitar, a quem precisar… Axé Odara!!!!!! Olorum Abossifuá O!!!!! Modupe!!!!! Embu das Artes, Novembro de 2011
Vitor da Trindade
skipe: sunde.trindade
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www.vitordatrindade.com
http://teatropopularsolanotrindade.blogspot.com/
www.revistadosamba.com.br
*Vitor da Trindade tem 54 anos, é compositor e percussionista, tem 04 discos próprios gravados, vencedor do Premio Cultural Petrobras 2005, ex-professor da Landesmusikakademie de Berlin, Groove Zentrum fur Perkussion e Musikschule Schonenberg na Alemanha, já se apresentou em quatro continentes com o trio Revista do Samba, com lançamento do quinto CD, Revista Hortência do Samba, co-produção Brasil-França, previsto para março de 2011 em Marseille, Paris, Berlin e São Paulo. É professor de música e vice-presidente do Teatro Popular Solano Trindade.
GLOSSÁRIO:
- Axé Odara!!! = Paz, saúde e prosperidade com beleza…
- Olorum abossifua O!!! = Paz de Deus!!!
- Modupe!!! = Obrigado
- Alabe = Tocador chefe da orquestra dos Orixás
- Rum Pi e Le = Os três tambores
- Aye = Nosso planeta Terra
- Orum = Onde moram os Orixás
- Oyo = Reinado de Xangô
- Xire = Reunião
- Gan = Agogô de 1 campânula só
- Hamunha = Ritmo que abre a festa em honra aos Orixás
- Agueres bravuns e satos = Outros ritmos
Que todos os Deuses de todas as Nações Africanas o abençoem hoje e sempre!!!!
Que Nzambi Npungu lhe dê a boa sorte!!!
Abraços,