Esse é o período em que a saudade bate mais forte. O inverno tomou conta da nossa rotina. Vez ou outra sopra uma brisa primaveril que nos ilude e nos convence a deixar os pesados casacos em casa, ousando uma escapada com roupas mais leves. Mas não dura mais de dois dias. A posição do sol incomoda, sempre num ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao horizonte, mesmo ao meio-dia. O pequeno consolo é que ganhamos algumas horas de sol, depois das tradicionais oito horas de dezembro.
Fazendo as contas, descobri que os dias da Merla, que são os últimos três dias de janeiro, marcam o meio do inverno no hemisfério norte. Por algum motivo que talvez Freud explicasse, Os dias da Merla funcionam como o ponto de inércia do inverno no imaginário deste povo. É o momento em que as pessoas começam a notar a mudança da temperatura e o aumento das horas de sol. Mesmo sendo fevereiro o mês dos recordes de frio.
O clima da Planície Padana é realmente atípico. Não havendo nevado (de verdade) em Piacenza, resolvemos ir encontrar a neve no Passo Penice, uma pequena estação de esqui a poucos quilômetros. No fim-de-semana seguinte, para contrastar, fomos a Gênova visitar o maior aquário coberto da Europa, onde é permitido tocar as arraias.
De volta a casa, a rotina reinicia: Me levanto cedo e (havendo coragem e ausência de chuva) saio para uma volta de bicicleta ou a pé. Uma hora pelas ruas geladas e iluminadas na madrugada italiana. Sob duas camadas de roupas de ginástica apropriadas para o frio, cachecol, capa de plástico (muito útil contra os ventos gelados) e luvas de esqui, observo o lento e preguiçoso despertar da pacata cidade. Quatro e meia, cinco da manhã. Neste período os carros ficam todos brancos e quem não tem garagem coberta, encontra dificuldades em sair de casa. É necessário esquentar bem o motor antes, raspar pacientemente o gelo grudado nos vidros ou derretê-lo com água morna. Por volta das seis a cena é comum. O e a neve também tomam conta das calçadas e beirais das janelas.
A partir do fim de janeiro fala-se muito dos preparativos do Festival de San Remo (ai…) e do Carnaval de Veneza. Mas como essa não é uma festa levada a sério por aqui, fica difícil saber exatamente quando é. Os calendários são desprovidos de qualquer informação a respeito. Vai-se ao trabalho, à escola, a vida não pára nem muda. Até as notícias pela internet não informam sobre as datas, apenas dizem: “…os preparativos para o desfile…” mas sem esclarecer se o desfile ocorrerá no fim-de-semana seguinte ou dentro de um mês. A única certeza apareceu na necessidade de ajudar numa redação de escola, a qual deveria contar o Carnaval da própria cidade.
Cinzas. A neve continua a cair misturada com a fina chuva. E se vocês pensavam que a meteorologia fosse uma ciência exata, podem tirar o cavalo da chuva. Ou da neve. Existe sim a neve misturada com chuva. Os telhados ficam brancos, com uma fina camada de neve, mas o asfalto transforma a neve rala em água. Os carros passam mais lentos, por causa do gelo. As bicicletas passam mais lentas, por causa do vento. A vida escorre como um fio d’água mais denso, quase congelada, no meio fio do calçamento secular da cidade do pisarei e faso’. Nem mesmo o cheiro (resgatado na memória) do acarajé fritando no dendê de Itapoan reaquece os meus sentidos. A neve aumenta.
A luz alaranjada que toma conta de Salvador neste período quando o sol se põe, me fará recordar (um dia) dos dias da Merla passados em Piacenza. Da mesma forma que a areia da praia e a música de Caetano (“… Eu sou a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma…”) poderão suscitar lembranças italianas. Difícil será reviver a sensação de frio intenso por longos períodos. Hmmm… Acho que isso pede uma meditação a dois em companhia de uma garrafa de vinho.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.