Na mais importante Universidade brasileira, a gestão do reitor João Grandino Rodas é comparada à repressão da ditadura, durante a qual a instituição foi ao mesmo tempo vítima e colaboradora
São Paulo – Professores e alunos da Universidade de São Paulo (USP) defendem a instalação da Comissão da Verdade para investigar crimes cometidos durante a ditadura (1964-85) contra docentes, estudantes e trabalhadores da instituição. A proposta foi defendida em ato pela democratização da USP realizado na última quinta-feira (1º). “Precisamos criar uma comissão da memória da repressão na universidade. Temos de saber quem sofreu, quem foram os cúmplices do regime empresarial/militar, seus nomes, funções que ocupavam e quais os delitos praticados”, conclamou Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP.
Em sua participação, ele apresentou dados oficiais sobre os brasileiros que sofreram com a repressão no Brasil. Ao todo foram 20 mil os presos políticos, muitos dos quais torturados até a morte; 354 executados sumariamente; 10.034 submetidos a inquérito policial militar; 707 processados judicialmente; 130 banidos do país e 4.962 funcionários públicos demitidos.
Com uma fala emocionada, marcada pela descrição dos períodos que compuseram o regime militar, dos aparatos repressivos, dos requintes de crueldade e dos nomes de alguns dos professores, alunos e servidores torturados, mortos e desaparecidos, o jurista apresentou outras propostas para a democratização da instituição. Uma delas é a construção de um memorial onde constem os nomes dos mortos, torturados e desaparecidos. “Trata-se de reverenciar aqueles que tiveram a dignidade de se insurgir contra um regime feito à base de atrocidades”.
Outra sugestão é a criação de um grupo de advogados encarregados de atuar em ações por danos morais contra os assassinos e torturadores do regime de exceção enquanto o Supremo Tribunal Federal não abrir ações criminais.
Rodas “destruiu” biblioteca
Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito, pediu desculpas pela contribuição da unidade em que leciona à gestão da USP. De lá vieram os reitores Luis Antonio da Gama e Silva, Miguel Reale e agora João Grandino Rodas. “Quando diretor no Largo São Francisco, Rodas destruiu a biblioteca. Quem não tem apreço pelos livros e pelo saber não pode dirigir uma universidade que se preze”, afirmou. “E Miguel Reale fez uma lista dos professores que deveriam ser cassados e entregou aos órgãos de repressão. Sem contar os professores que serviram à ditadura atuando em gabinetes da Secretaria de Segurança que executava a repressão”.
Bercovici criticou também a postura de Rodas, que recentemente postou no blog da reitoria nota da revista Veja São Paulo. Na edição de 4 de janeiro, a publicação o destaca entre os paulistanos, chamando-o de xerifão da USP, que, “com pulso firme, lidou com a rebeldia dos alunos”. “Pelo jeito nosso dirigente gosta de ser chamado de xerife. Só que xerife é eleito, coisa que ele não foi. Ele perdeu a eleição”.
O docente de Direito lembrou ainda que a maneira como os estudantes e outras pessoas que se opõem a determinadas políticas são tratados ali, como no caso da expulsão dos estudantes. “Quando prevalece a violência sobre o diálogo, é sinal de que alguma coisa está errada”.
Para ele, outro sintoma do autoritarismo na universidade é a falta de diálogo com a população, sobretudo a mais pobre, que, ironicamente, é a que mais contribui para a manutenção da instituição e que dela nada recebe em termos de ensino e de benefícios que suas pesquisas podem trazer. “Precisamos trazer às claras o passado, o presente e os projetos futuros dessa universidade. Com isso vamos impedir que as vítimas não padeçam da segunda morte, que é o esquecimento”.
Eleição do papa
Já o professor de filosofia Vladimir Safatle, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), destacou a maneira como a faculdade vem sendo perseguida pela reitoria. “Nosso próprio reitor faz apologia pública contra setores da FFLCH”. E ressaltou que o manifesto expõe a situação completamente aberrante do funcionamento da estrutura da instituição.
Segundo Safatle, há dois modelos de gestão. Um em que o reitor é contratado depois de aprovado por uma comissão e outro em que ele é eleito por voto dos professores. “Aqui temos os defeitos dos dois modelos e nenhuma das qualidades. É mais fácil entender a eleição do papa do que a maneira como funciona aqui a escolha do reitor. E como se não bastasse, o processo pode ser anulado pela intervenção moderadora do governador do estado de São Paulo, que nada entende de pesquisa acadêmica. De onde vem a autoridade para intervir?”, questiona.
Expulsa da universidade juntamente com outros cinco colegas, em dezembro passado, a estudante da FFLCH Jéssica Trinca também criticou os métodos autoritários adotados pela reitoria. “Entre os alunos expulsos, há quem nem estava em São Paulo quando ocorreram os episódios pelos quais estão sendo incriminados. O Yves [de Carvalho Souzedo] estava no Espírito Santo. Não participou nem da ocupação, não foi à assembleia e muito menos chutou a porta”, disse.
Regimento da ditadura
Ela lembrou que o regimento da universidade data de 1972. “Nos processos, o Rodas nem menciona o regimento da USP porque tem vergonha (de ter normas estabelecidas durante o regime militar na universidade) e tenta nos enquadrar no código de ética. Afinal, somos nós ou ele que fere a imagem da USP?”, questionou.
Na versão da reitoria, em março de 2010 Jéssica e colegas teriam invadido uma sala da Coordenadoria de Assistência Social (Coseas), setor responsável pela concessão aos alunos de bolsas para alimentação, transporte e moradia, entre outros.
O manifesto pela democratização da USP repudia ainda o monumento que está sendo construído na Praça do Relógio, no campus da Cidade Universitária em São Paulo, para homenagear os mortos e cassados na “revolução” de 1964.
Segundo os manifestantes, um monumento na USP já deveria ser sido erguido. Contudo, segundo eles, é inaceitável que a homenagem venha de uma reitoria que mantém o caráter autoritário e antidemocrático nas estruturas de poder da universidade, com dispositivos e práticas forjadas durante a ditadura militar.
Repúdio à intimidação
Já está também na internet um abaixo-assinado pela liberdade de expressão na Universidade de São Paulo. Proposto pela assembleia setorial da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas e aprovado pelo Conselho de Representantes e pela assembleia da Associação dos Docentes da USP (Adusp), o manifesto repudia práticas de intimidação adotadas pelo reitor João Grandino Rodas.
Os diretores da Adusp estão sendo interpelados judicialmente por declarações que supostamente teriam dado ao jornal O Estado de S. Paulo sobre a maneira como a atual administração emprega as verbas da instituição.
Na última semana, eles aprovaram a contratação de um escritório de advocacia para defender seus dirigentes e a organização de um debate com juristas para discutir os ataques da reitoria contra a democracia na universidade, que inclui a expulsão de alunos.
Segundo nota da entidade, “para que existam garantias democráticas na universidade e para que a liberdade de pensamento prevaleça, condição fundamental para a criação científica de toda sorte, a administração precisa responder a críticas com argumentos e não com processos judiciais. E que os docentes da USP não podem estar submetidos a uma gestão que tenta criminalizar aqueles que não aprovam suas prioridades e metas”.
Íntegra do manifesto pela democratização da USP
“Nós, perseguidos pelo regime militar, parentes dos companheiros assassinados durante esses anos sombrios e defensores dos princípios por eles almejados assinamos este manifesto como forma de recusa ao monumento que está sendo construído em homenagem às chamadas “vítimas de 64” na Praça do Relógio, Cidade Universitária, São Paulo.
Um monumento na USP já deveria há muito estar erguido. É justo, necessário, e precisa ser feito. Porém, não aceitamos receber essa homenagem de uma reitoria que reatualiza o caráter autoritário e antidemocrático das estruturas de poder da USP, reiterando dispositivos e práticas forjadas durante a ditadura militar, tais como perseguições políticas, intimidações pessoais e recurso ao aparato militar como mediador de conflitos sociais. Ao fazer isso, essa reitoria despreza a memória dos que foram perseguidos e punidos pelo Estado brasileiro e pela Universidade de São Paulo por defenderem a democratização radical de ambos.
Esse desprezo pela memória dos que sofreram por defender a democracia, dentro e fora da Universidade, se manifesta claramente na placa que inaugurava a construção de tal monumento. A expressão “Vítimas da Revolução de 1964” contém duas graves deturpações: nomeia de “vitimas” os que não recearam enfrentar a violência armada, e, mais problemático ainda, de “revolução de 1964” o golpe militar ilegal e ilegítimo.
Essa deturpação da linguagem não é, portanto, fortuita. Resulta da ideologia autoritária predominante na alta cúpula da USP.
Durante a ditadura, essa ideologia autoritária levou a direção central da USP a perseguir, espionar, afastar e delatar muitos dos que então resistiam à barbárie disseminada na Universidade e na sociedade brasileira como um todo. Ainda macula a imagem desta Universidade a dura lembrança (i) dos inquéritos policiais-militares, instaurados com apoio ou conivência da reitoria; (ii) das comissões secretas de vigilância e perseguição; (iii) das delações oficiais de alunos, funcionários e professores para as forças de repressão federais e estaduais; (iv) da mobilização do aparato militar na invasão do CRUSP e da Faculdade de Filosofia em 1968; (v) da colaboração quase institucional da USP, na figura do seu então reitor, Luis Antonio Gama e Silva, na redação do Ato Institucional Número 5 – AI5; (vi) e da aprovação, por Decreto, do regimento disciplinar de 1972, que veda a docentes e discentes qualquer forma de participação política e confere à reitoria poder para perseguir os que o fazem.
Atualmente, essa mesma prática autoritária se manifesta não apenas na inadmissível preservação e utilização do regimento disciplinar de 1972 para apoiar perseguições políticas no interior da Universidade, mas também (i) na reiterada recusa da administração central da USP em reformar o seu estatuto antidemocrático, mais afeito ao arcabouço jurídico da ditadura militar do que à Constituição Federal de 1988; (ii) na forma pouco democrática das eleições dos dirigentes da USP, que assume sua forma mais absurda no processo de escolha do reitor por meio de um colégio eleitoral que representa menos de 1% da comunidade universitária; (iii) na ingerência do governo do Estado na eleição do reitor desta Universidade; (iv) e, mais grave ainda, na recorrente mobilização da força policial-militar para a resolução de conflitos políticos no interior desta universidade, tal como ocorreu, recentemente, na desocupação da reitoria da USP.
Nesse sentido, em memória dos que combateram as práticas da barbárie autoritária e suas manifestações, defendemos que a melhor forma de homenagear os muitos uspianos e demais brasileiros que tombaram nesta luta não é um monumento; mas, sim, a adoção dos princípios verdadeiramente democráticos em nossa Universidade, o que demanda o fim do convênio com a Polícia Militar, bem como o fim das perseguições políticas pela reitoria e pelo Governo de São Paulo a 98 estudantes e 5 dirigentes sindicais, através de processos administrativos e penais, e a imediata instauração de uma estatuinte livre, democrática e soberana, eleita e constituída exclusivamente para este fim”.
(Por: Cida de Oliveira, Rede Brasil Atual)