Por Márcio Amêndola de Oliveira*
RESUMO TEMÁTICO
Sem pretensões ensaísticas, decidi realizar um breve relato de parte de minha própria experiência com o fenômeno do Fascismo na vida cotidiana brasileira, no século XX. Fiquei muito impactado com as aulas do Prof. Nicolau Sevcenko, no curso de História que frequentei na Universidade de São Paulo (USP), particularmente a de 26 de Junho de 2010, que focava as questões culturais, a influência do pensamento conservador na ‘cultura da guerra’ e o surgimento do conceito de ‘inimigo interno’, amplamente utilizado pelos regimes de corte autoritário, em Portugal, Espanha, Brasil e América Latina.
Durante a aula, o Professor instigou-me a relatar aos colegas sobre os impactos da propaganda dos Cinejornais da ditadura (Canal 100, Jean Manzon, Primo Carbonari, entre outros – depois explico) sobre minha vida, e percebi que o breve relato seria insuficiente para levar aos colegas todo o sentimento, toda a carga de influência psíquica e cultural que tal técnica de persuasão causou sobre mim. Sei que se trata de seara arriscada – usar as experiências pessoais com a História, sob o risco do anacronismo e total ausência de distanciamento que uma análise ‘deveria’ requerer do historiador – mas a tentação de discorrer quase que livremente sobre estes (Cinejornais) e outros impactos, levou-me à conclusão de dizer a mim mesmo: ‘Porque não?’. Então, à empreitada…
CENA 1
1966. Férias em Assis-SP, terra dos meus pais, Cecília e Flávio (hoje já falecidos). Meus primos (os Pellizzon) e irmãos (os Amêndola) correm pelo quintal. Chego à conclusão de que tudo está perdido, não há como me esconder de tamanha algazarra, de tanto moleque correndo pelo mato, pelas reentrâncias da velha casa de minha avó, na pacata cidade do interior paulista. Serei a primeira vítima do ‘pega-pega’, justo eu, o mais frágil entre os frágeis, o quase caçula dessa horda de moleques, o que sempre apanha de todo mundo, inclusive da Eloá do tio Zé?
Lembrei-me do famoso (e não menos tenebroso) porão da casa da Vovó e do Vovô, um lugar que, a cada passo tornava-se mais escuro, o teto ia abaixando, até que éramos obrigados a rastejar pra chegar bem no fundo. Ir até lá, onde ratos, baratas e monstros (ah, os monstros!) poderiam nos agarrar, era uma das mais terríveis das provas de coragem.
Enchi-me de falta de senso – pensei ser coragem aos seis anos – e enveredei-me pelo porão, indo fundo, mais fundo, cada vez mais fundo, até que ninguém pudesse sentir minha presença. O tempo passou, alguns chegaram, olharam, blefaram – vi você!! – não dizendo meu nome, não valia. Acostumei-me com aquele quase sem luz, penumbra diabolicamente assustadora, quando vi, por meio de um respiradouro (de ferro, que sai à rua, para que o subsolo das casas antigas não apodrecesse no mofo), que a luz quadriculada incidia sobre o velho retrato. Pensei ser o de um antigo bisavô desconhecido, mas só mais tarde soube tratar-se do bravo DUCE, Benito Mussolini [fig. 01], ditador da Itália na Segunda Grande Guerra, justiçado por sua própria gente, durante o conflito.
1980. Anos depois, quando freqüentava Letras na Unesp de Assis, meu avô Cármino já falecido, perguntei a minha avó, Eloah, o que diabos um retrato de Mussolini fazia no porão de sua casa, em meio a cartas velhas, ferramentas, moedores de pimenta, rolos de fazer macarrão. Ela relatou-me que nos anos 1940, quando tinham uma próspera Padaria e Campo de Bocha (da casinha de carteado, com vidraças pintadas de preto ela nunca se pronunciava) na Rua do Cemitério, o povo de Assis, de repente passou a hostilizar os ‘oriundi’ (italianos). Volta e meia, passavam pela rua e ensaiavam insultos:
– Quinta Coluna! Carcamano! Filho da Puta!
Isto quando não atiravam pedras, quebravam os vidros dos janelões da ainda imponente casa de meus avós, que ficava nos fundos da padaria. Foram tempos difíceis. Minha avó, então com 5 filhos (geraria 9, dos quais 8 ‘vingaram’), apertava seu coração de medo e tristeza pelo velho Cármino Amêndola.
– Sou brasileiro! Bra-si-lei-ro, porra!!
Apavorada, minha avó o arrastava para longe da janela. Por via das dúvidas, o quadro do DUCE da sala de visitas foi retirado e escondido, e Mussolini deixou de olhar para o Cristo Crucificado de chumbo, que ficava impávido na parede oposta, indo para sempre freqüentar o tenebroso porão da casa (aquele, onde os monstros habitavam). Assim desfez-se minha dúvida sobre aquela imagem emblemática, bem no porão de minha avó, entre restos do passado, que eu encontrara numa brincadeira de crianças, no distante ano de 1966.
(Continua no próximo capítulo….)
(*Márcio Amêndola é jornalista e historiador)
Tio, adoro ler seus textos! Fico na frente do computador como que entrando no texto, quase sendo “engolida” pela máquina! rs… Suas memórias são sempre muito generosas, pois contemplam as memórias de toda a família. Adoro lê-las, pois me situam na vida e me explicam de onde partiram os caminhos que segui. Estou aguardando os próximos capítulos.
Márcio, obrigado por esse texto, ou seria melhor dizer “espanador” de nossas doces memórias. Não me lembrava que você tinha quase me matado, só lembrava que eu era mesmo uma “peste”.