(*) Segundo artigo da série publicada pelo semanário Brecha que propôs um debate para lideranças políticas uruguaias a partir de um artigo do governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sobre os limites e desafios, para a esquerda, de governar e, ao mesmo tempo, não abandonar a reflexão teórica e as ideias da utopia socialista.
A Frente Ampla se guia pelo programa de governo e não é inútil recordar que, se alguém baixar o “Programa da FA 2010-2015”, do V Congresso de dezembro de 2008, e digitar “socialismo” no mecanismo de busca, aparecerá uma resposta automática: “Não foi encontrada nenhuma ocorrência”. Por tanto, “as coisas a resolver”, “as alianças” do governo e a “relação com os eleitores”, mencionadas por Tarso Genro em seu artigo, já estão pré-determinadas por um programa de governo que não fala em “socialismo”.
Segundo os estudiosos da ontologia da linguagem, somos o que dizemos, e não dizemos socialismo. O que não tem evitado que o governo faça esforços para reduzir as desigualdades geradas pela sociedade capitalista.
O que nos guia, na gestão do governo, é o conceito de “equidade”, conceito que aparece no programa de governo em várias oportunidades e concepções: de gênero, étnico-racial, de oportunidades, de receitas, de direitos…
Portanto, não se pode dizer que o programa da Frente Ampla seja um programa de construção de uma sociedade socialista, mas tampouco se pode dizer que seja indiferente às desigualdades que uma sociedade capitalista gera. A discussão então deveria ser se este plano de ação ajuda ou não a construção de uma sociedade socialista.
Não concebo a sociedade socialista como um modelo pré-configurado, mas sim como uma construção social que transcende uma geração, como um processo dialético no qual os avanços ou retrocessos nas relações sociais de produção são legitimados pela sociedade.
São vários ao avanços feitos pelo governo da Frente Ampla neste caminho de construção: a reforma tributária, o imposto sobre a concentração dos imóveis rurais, a reforma da saúde, o Plano de Equidade, o Fondes, o Plano Juntos, o Plano Ceibal, o Programa Professores Comunitários…,são ações de governo que, ao mesmo tempo que reduzem desigualdades, geram mudanças institucionais que diminuem as inequidades, e fazem isso de tal forma que o processo seja dificilmente reversível.
É certo, porém, que nós não temos feito uma adequada promoção destes avanços e, portanto, do ponto de vista das ideias, do discurso, não temos feito uma publicidade das ideias de construção de uma sociedade mais justa.
Se somos o que dizemos, não só não dizemos socialismo, como dizemos bem estar material, salário digno (somo se a dignidade passasse pelo dinheiro), mais recursos, maior orçamento, distribuição de renda…dinheiro!
No discurso, na comunicação, validamos um sistema de incentivos, de prêmios e castigos que fazem o processo de seleção e reconhecimento social por meio das conquistas materiais. Isso não é independente da ordem de preferência na escala de valores da sociedade que promovemos, e estamos pagando as consequências: não mobilizamos os jovens.
“(…) nem bem a eficácia de um ideal morre, a humanidade veste outra vez seus trajes nupciais para esperar a realidade do ideal sonhado com nova fé, com tenaz e comovedora loucura. Provocar essa renovação (…) é em todos os tempos a função e o trabalho da juventude”. Assim disse José Enrique Rodó, em “Ariel”.
Pode ser que tenhamos alguns dos problemas de gestão assinalados por Tarso, mas creio fortemente que, acima de qualquer coisa, temos um problema de comunicação e de convocação da juventude para participar das reformas que levem à construção de uma sociedade solidária.
O socialismo como ideia reguladora? Ante as limitações que a gestão nos impõe, Tarso nos convoca a retomar o debate e a utopia de um modelo de sociedade universal de uma democracia socialista. Confesso-me parcialmente contrário a tal pretensão, ao menos por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque a democracia socialista promulgada não é um modelo universal que se possa impor, e isso pela própria definição da democracia e da liberdade de pensamento, e, portanto, de ideias que a concepção traz associadas (a pretensão de uma ideia reguladora universal não é diferente da do pensamento único).
Um modelo de sociedade é uma construção social e, portanto, com contradições que geram caminhos não lineares. A própria concepção de “máxima desigualdade aceitável” é uma concepção social e histórica, mutável no tempo e entre diferentes sociedades. Além disso, é multidimensional (oportunidades, receitas, ponto de partida, direitos, etc.) e plena de dilemas entre suas próprias dimensões: pode a igualdade de receitas gerar desigualdade de direitos e de obrigações, por exemplo?
São as contradições e conflitos que esses dilemas provocam que geram soluções, mais ou menos estáveis em cada sociedade e em cada tempo. Ante as múltiplas dimensões de igualdade e desigualdade e os eventuais dilemas entre elas, os conceitos de “máximo aceitável” e “mínimo exigível” perdem sentido como ideia reguladora universal e utópica. Serão em cada momento histórico e em cada sociedade o resultado da construção social e da forma pela qual se resolvem as contradições e conflitos.
Neste sentido, o socialismo não deveria ser uma ideia reguladora utópica e universal, mas sim uma construção social a la uruguaia. Mas, como assinalei anteriormente, sou parcialmente contrário à ideia. É que há algo na proposta de Tarso que resulta desafiador para quem está no governo e enfrenta diariamente interesses em conflitos e dilemas: a proposta de uma ideia reguladora.
Diante das contradições e dilemas que enfrentamos creio que uma potente ideia reguladora pode ser explicitar a escala de valores que está por trás da resolução de um conflito de interesses ou de um dilema, e publicizá-lo. Uma explicitação que evidencie as contradições geradas por uma sociedade que persegue o bem estar material através de falsas liberdades individuais.
Que a ideia do socialismo apareça não como uma ideia universal e utópica, mas sim como a resposta social à perda de liberdade provocada pela escravidão da perseguição do bem estar material. A democracia socialista não como ideia nem como modelo pré-configurado, mas sim como construção social alternativa a um modelo que marginaliza e aliena.
Em resumo. E então, falando desde a perspectiva do governo da Frente
Ampla, “qual é o lugar da nossa geração na evolução das ideias?”
“Confesso que consumi”, parafraseando ironicamente a Neruda, parece ser o legado que estamos deixando para a próxima geração. Mas não é certo, nem seria justo. Participamos da reconstrução de uma democracia mil vezes mais justa que a ditadura que a precedeu, mas ainda injusta.
E nos vangloriamos das conquistas com uma linguagem que nos condenará a ser lembrados como os que participamos do crescimento econômico do país. Pobre linguagem a nossa.
Mudar nosso discurso, mudar nossa convocatória aos jovens, não através de temas econômicos, mas sim de justiça social, pode levar-nos a mudar nosso papel como geração nesta evolução e construção social da qual participaram várias gerações.
“Confesso que tentamos”, deveria ser nosso legado.
(Por Luis Porto, Vice-ministro de Economia e Finanças do Uruguai).
Publicado originalmente no semanário Brecha
Tradução: Katarina Peixoto