Por Márcio Amêndola de Oliveira*
CENA 2
Meu pai, Flávio de Oliveira, em 1964 perdeu sua bolsa de estudos no último ano da Faculdade de Belas Artes (ele era um ardoroso defensor da Arte Acadêmica, praticada e incentivada no prédio onde hoje funciona a Pinacoteca do Estado, em São Paulo) por ser janista e presidir o Grêmio Estudantil. Fora da faculdade e praticamente sem trabalho em seu ateliê, onde com amigos, pintava flâmulas e fazia retratos dos diretores dos grandes bancos do entorno da Sé e Vale do Anhangabaú, meu pai migrou para a pequena Pedro de Toledo, no Vale do Ribeira, com emprego certo (no IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ajudado por um primo, que dizia: – Flávio, naquele fim de mundo ninguém te notarás! Na verdade, o IBGE ainda era um reduto de intelectuais comunistas ou simpatizantes do antigo governo de João Goulart, e ainda comportava certa ‘liberdade’, desde que os servidores federais ficassem ocultos, sem ‘dar bandeira’.

National Kid embalava meus sonhos de uma aventura espacial contra os malvados Incas Venuzianos
E assim foi. Nomeado pelo IBGE, meu pai Flávio, eu, minha mãe Cecília, e meus irmãos, Afonso Celso, Eloah e Flávia, passamos a viver naquele paraíso perdido, entre bananais e a serra do mar. Durante minha estada em Pedro de Toledo, freqüentei muito o cinema da cidade, de graça! (nomearam meu pai Juiz de Menores, e entrávamos sem pagar). Quase todos os filmes eram de Mazzaroppi ou ‘Bang-Bang à Italiana’, com Giulianno Gemma, Clint Eastwood (ele mesmo!), Terence Hill, Youl Brinner, Charles Bronson, entre outros. Na abertura de cada filme, passava um texto esquisito, assinado, de um tal departamento de censura federal, do qual nada lembro, a não ser da assinatura enorme de uma tal senhora Solange Hernandes.
Depois, a deliciosa prévia do faroeste, o Cinejornal, herança dos tempos do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo, na chamada Era Vargas (da ditadura do presidente Getúlio Dornelles Vargas), que produzia de tudo, dos Cinejornais a material escolar enaltecendo a figura do presidente. Em minha época, havia filmes de Primo Carbonari, Jean Manzon, mas o que eu gostava mesmo era do Canal 100 (de um tal Niemeier, que não é aquele da construção de Brasília).
O Cinejornal era como um programa de TV, mas numa tela imensa e uma música ensurdecedora. Gostava mais do Canal 100, porque mostrava cenas lindas de Futebol, quase sempre do Flamengo, e às vezes do Corinthians, Grêmio, Atlético Mineiro. A música envolvia e embargava a todos os moleques da platéia, que faziam grande algazarra. O jogo era visto em suas entranhas. Lá estávamos entrando no gol, com bola e tudo, gritando em meio a 150 mil (isso mesmo!) enlouquecidos torcedores. Podíamos até sentir a arquibancada estremecer, era uma hipnose coletiva dos moleques.
Mas o Cinejornal não era só futebol. Foi lá que ‘aprendi’ que o governo da gloriosa revolução de 1964 estava em boas mãos. Vi notícias do Presidente Arthur da Costa e Silva, de seu calvário, da Junta Militar que haveria de garantir a Ordem e o Progresso na difícil transição, e do glorioso general Emílio Garrastazu Médici, um dos grandes responsáveis pelo ‘TRI’ de 1970, liderado por Pelé e companhia. Dizia-se na época que o Brasil era uma imensa ‘Pátria de Chuteiras’, e olha que nem existia ainda um tal de Galvão Bueno. Na Televisão, aliás, assisti à primeira transmissão de uma Copa do Mundo, a de 1970. Nossa TV estava velha e cheia de defeitos. A velha Strauss, com mais de 10 anos, não servia mais. Meu tio João Amêndola viera passar alguns dias em visita, e foi com meu pai a Itanhaém, de jipe, para trazer a novidade: uma TV Colorado RQ, a última geração em aparelhos de TV, preto e branco, claro, porque a TV em cores só surgiria no Brasil muito tempo depois. Foi uma emoção imensa ver aquela Copa no novo aparelho pago em prestações a perder de vista. Ver o Brasil, ao vivo, ganhar o Tri e ficar definitivamente com a Taça Jules Rimet foi uma das maiores emoção da minha vida à época. Só pra registrar, essa taça, toda de ouro, foi roubada da sede da CBD (atual CBF), e ao que consta, derretida e vendida a quilo. Hoje temos apenas uma réplica.
A TV, a exemplo dos Cinejornais, dava larga divulgação aos atos do governo militar. Não por coincidência, a TV Globo foi fundada em 1965, um ano após o golpe, com a ajudinha e proteção dos generais. Coincidentemente, as maiores concorrentes, TV Excelsior e TV Tupi passaram por grandes dificuldades após incêndios misteriosos e acabaram por falir, abrindo espaço para a expansão ilimitada da nova Globo, apoiadora de todas as horas do regime.

A TV Colorado RQ e os heróis do Tri, quando o Brasil foi Campeão Mundial de Futebol da ‘Pátria de Chuteiras’.
Mas a transmissão de TV que mais me impactou naquela época foi a de 1969, quando a TV brasileira, com todas as suas limitações, transmitiu ao vivo a chegada do Homem à Lua, pela Apolo 11. Tudo era possível, e os EUA (Estados Unidos da América), que apoiavam o regime militar no Brasil, era a Nação que iria conquistar o Universo, sob meus olhos de menino, que ainda era fã de National Kid (herói espacial japonês, que lutava contra os Incas Venuzianos, aqueles malvados).
Certa vez, em 1970, quando estávamos com meu pai, em seu jipe do IBGE, ‘caçando’ caiçaras para o Censo decenal do IBGE, saímos de uma estradinha de terra perto de Juquiá, entrando pela BR-116, quando fomos parados por uma imensa barreira militar, que aguardava a descida de um grande helicóptero do Exército. Fiquei muito impressionado, já que era a primeira vez na vida que via tal tipo de aeronave. A cena dos soldados, todos fardados, de capacetes e fuzis, impressionou-me tanto, que pensei: “- Quero ser Soldado do Exército, dar tiros, ir pra guerra, mas principalmente, voar de helicóptero!”. Perguntei a meu pai o porquê do aparato, e ele respondeu nervosamente, e lacônico: – Estão procurando os terroristas… E eu, um menino de 10 anos, nem sabia o que era um ‘terrorista’, ou que a caçada, na verdade, era para tentar capturar o maior inimigo do regime militar, o lendário Capitão Carlos Lamarca que, para registro, conseguiu fugir espetacularmente daquele cerco.
(Continua no próximo capítulo….)
(*Márcio Amêndola é jornalista e historiador)