Na segunda parte da entrevista à Rede Brasil Atual, o autor da trilogia A Batalha do Chile afirma que a televisão só oferece ‘porcaria’ e está com os dias contados
São Paulo – Do prazer ao sacrifício: a filmagem da trilogia A Batalha do Chile acompanhou o movimento do país no segundo semestre de 1973. À medida que se aproximava o golpe, o diretor Patrício Guzmán e sua equipe se tornavam calados e receosos. “A metade do filme fizemos com muita paixão, com desejos e com alegria. Mas nos últimos três meses era terrível. A direita se organizava de uma maneira integrada, a esquerda tinha muitas contradições e não havia uma estratégia única para enfrentar o golpe”, afirma na segunda parte da entrevista concedida à Rede Brasil Atual e ao Coletivo Cine Escadão.
Guzmán revela bastidores da filmagem, como os equipamentos escassos e a necessidade de economizar película. “Era terrível porque dava vontade de filmar sem parar”, conta. Isso impôs a necessidade de pensar muito sobre quais cenas deveriam ser priorizadas, o que pode ter contribuído para o resultado final, considerado espetacular. “É um filme que tem constantemente uma luta de contrários, uma luta de classes. Como havia um Estado de direito, ou seja, havia o perfeito direito de ir com a câmera para todas as partes, era como filmar uma paisagem.”
O câmera Jorge Miller, melhor amigo de Guzmán, foi assassinado após o golpe, e a montagem prosseguiu em Cuba durante os seis anos seguintes (Foto: divulgação)
Na conversa, o diretor comenta ainda sobre a má qualidade da televisão oferecida aos latino-americanos e prevê o fim do atual modelo de divulgação. “Não tenho certezas, não tenho provas científicas, mas estou vendo por todas as partes que as grandes cadeias estão caindo, e que estão subindo os canais menores ou a internet. Não é mais necessário uma cadeia gigantesca que começa às oito da manhã e termina à meia-noite dizendo coisas que não interessam a ninguém.”
No momento de filmagem de A Batalha do Chile, o senhor já se dava conta do que estava ocorrendo no país?
Sim. A Batalha do Chile é um filme muito pensado, com muita reflexão antes de filmar. Refletimos muito porque tínhamos vergonha de gastar o filme rapidamente. Tínhamos tão pouco filme que precisávamos pensar muito bem o que iríamos fazer. Ou seja, não fizemos por um afã estético, mas simplesmente por uma questão prática. Enviaram-nos filme para 18 horas de gravação, o que é pouco. Então, tínhamos como norma gastar no máximo duas latas diárias. Se não ocorria nada, guardávamos para o dia seguinte. O mais doloroso era que estava em uma grande assembleia de trabalhadores e alguém estava falando algo ótimo… Eu tinha uma luz portátil e às vezes tinha de apagar. O câmera perguntava: “Por que apagou?”. E eu respondia: “Pare porque já filmamos o suficiente.” Era terrível porque dava vontade de filmar sem parar. E isso porque filmávamos em Santiago. Nas províncias ocorriam coisas horríveis que não tínhamos como filmar.
Percorríamos toda a cidade todos os dias, tínhamos contatos em todos os pontos da cidade, almoçávamos nas fábricas. Os trabalhadores nos diziam coisas que nenhum jornalista sabia. Também íamos ao Congresso conversar.
Como vocês se organizaram naquele momento?
Tínhamos na parede de nossa pequena sala um esquema que se dividia em economia, cidadania e política. Aí se via toda a realidade chilena, tudo o que estava ocorrendo. Nos partidos, nos grêmios, no Executivo, nos partidos de esquerda, nos cordões industriais, tudo estava planificado. Com isso pudemos fazer um tipo de material que tinha como contraponto a uma ação da direita uma resposta da esquerda. A uma ação da esquerda, uma contra-manifestação da direita. É um filme que tem constantemente uma luta de contrários, uma luta de classes. Como havia um Estado de direito, ou seja, havia o perfeito direito de ir com a câmera para todas as partes, era como filmar uma paisagem. Se houvesse uma ruptura no Estado de direito, isso teria mudado por completo.
Tínhamos credenciais falsas. Eram quatro diferentes. Uma da direita, uma de centro, uma de esquerda e uma francesa. Eram bem falsificadas. Pendurávamos no pescoço de acordo com onde estávamos. Se estávamos em uma manifestação de caminhoneiros, colocávamos a credencial do Canal 13, que era de direita. O problema é quando chegava o Canal 13 de fato, aí tínhamos de tentar sair pelo outro lado.
Como a aproximação do golpe foi se fazendo sentir?
A metade do filme fizemos com muita paixão, com desejos e com alegria. Mas nos últimos três meses era terrível. A direita se organizava de uma maneira integrada, a esquerda tinha muitas contradições e não havia uma estratégia única para enfrentar o golpe. Allende estava sozinho, dizia coisas que não chegavam à base. Este último momento era dramático porque víamos que o governo estava cercado e que vinha um golpe de Estado. Havia três possibilidades: golpe de Estado, golpe branco, que era negociado, ou guerra civil. Qualquer uma era terrível. Eu me lembro que nos últimos tempos ia dirigindo o veículo e não nos falávamos. O câmera ‘Flaco’ Miller ia tentando se distrair. Atrás iam o ajudante e o sonoplasta. Lembro que nos aproximamos de um acampamento de caminhoneiros. Com muito medo porque eram muito violentos. Fazer nosso trabalho começou a ser uma obrigação, mais que um prazer, até o dia do golpe de Estado.
E então veio a prisão.
Não podia acreditar quando estive no Estádio Nacional, duas semanas depois, que aquilo pudesse ocorrer. Como passar de um Estado pré-revolucionário, com marchas, com cantos, com bandeiras, com esperança, com Allende falando, para um estádio que parecia um campo nazista. Completamente nazista. É impressionante passar de um Estado a outro. Muito violento.
Estava sentado ao lado de um velhinho. Devia ter seus 80 anos. Tinha os óculos quebrados, havia apanhado. E ele me dizia: ‘Não se preocupe que não nos vão matar’. E eu perguntei o porquê. E ele disse que já haviam passado três dias, que se tivessem de nos matar teria sido ao princípio. E eu perguntei como ele sabia disso. E ele: ‘Porque eu combati na Guerra Civil Espanhola’. E sabia tudo. Ele nos dizia mais ou menos o que ia ocorrer. O filho dele era do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária) e estava desaparecido. O estádio era um catálogo de terror. Os que estávamos no solo tremíamos. Tudo isso em uma semana. Nunca pensávamos que este Exército, que se dizia constitucional, democrático, leal, seguiria tão ao pé das letras as instruções da Escola das Américas. As instruções que deram no Chile eram as mesmas que se davam no Brasil.
Acabou nosso filme dois dias depois do golpe. Foi o fim do filme e o fim do governo. O último dia não filmamos em La Moneda. Eu disse à equipe que tínhamos um tesouro que ninguém tinha. Que nenhum correspondente internacional teria. Portanto, guardemos este tesouro. O golpe de Estado é um fato público, visível. O que não filmaram é o movimento de trabalhadores. De maneira que guardemos isso e vamos ao La Moneda sem câmeras ver o que ocorre. Todos os jornalistas diziam que não havia como chegar, que havia um cordão de policiais e de tanques. Voltamos. E eu disse ao câmera para levar o equipamento, que era pequeno, e gravar diante da televisão tudo o que ocorresse. Por isso o filme termina com o discurso da Junta Militar. Esse comunicado nunca mais eles transmitiram porque tinham vergonha. E nós o temos inteiro.
Como foi o trabalho de salvar o filme da repressão que se formou após o golpe?
Depois saímos ao exílio pouco a pouco. Me liberaram do estádio. Perguntaram o que eu fazia. Disse que fazia filmes para a França, mandava para o exterior, e não tinha nenhum material. O material estava guardado em uma casa secreta que sequer minha mulher sabia onde era. Entrei em contato com a Embaixada da Suécia, havia um grande embaixador que tomou o material e o salvou.
Pagaram uma passagem para ir a Madri, fui a Paris. Buscamos por toda a parte meios econômicos para continuar o filme. Alguns ofereciam montagem, outros ofereciam som, outros tinham crédito, mas não havia maneira de fazer um filme de maneira tão dispersa. Os cubanos estavam mais ou menos a par do que estávamos fazendo e disseram que podíamos ir. Fomos para seis meses, ficamos seis anos. Era terrível este trabalho porque era ter a história diante de ti. Era viver outra vez o que havíamos vivido. Se a vida supera a montagem, neste caso o processo social supera a montagem. Assim, pouco a pouco fomos transformando a estrutura em três partes. Um dia me ocorreu que eram três filmes diferentes. Este trabalho durou muito. Foi belíssimo do ponto de vista estético, artístico. Os cubanos olhavam o que estávamos fazendo e ficavam maravilhados com o grau de politização que os chilenos haviam atingido. Vivemos uma época de florescimento ideológico, isso era muito estimulante para nós.
A má notícia é que um ano depois de estar montando, Jorge Miller Silva, o câmera, é preso junto com sua companheira. Ela tinha um cargo importante no MIR. Nunca mais se soube de Jorge. Foi torturado em Villa Grimaldi e o fuzilaram. Provavelmente o atiraram ao mar. Tinha 27 anos, era meu melhor amigo e por isso o filme está dedicado a ele. Sua mãe morreu de pêsames. Transformou-se em uma ativa militante, como as Mães de Maio, e morreu de dor. Perdemos o melhor câmera do Chile, tinha um talento único. Nossas ambições de fazer planos-sequência, que é uma loucura porque é muito difícil, fizemos vários. Depois dessa tragédia seguimos trabalhando e nosso objetivo maior era levar à maior quantidade possível de países, mostrando ao mundo o belo que foi o processo de mudança pacífica de um país para acabar com a pobreza. Com um tipo que mostrou que estava disposto a morrer para não entregar o país a Pinochet. Quando Allende se dá um tiro, Pinochet perde moralmente. Porque o fantasma de Allende segue flutuando até hoje como um personagem íntegro. Que político faria isso hoje em dia?
Há um texto de 1986 em que o senhor estava bastante otimista com a produção de vídeos populares pelos jovens. Continua otimista? Qual o cenário atual?
Não nos sobra outro remédio que sermos otimistas. Não conseguimos nada sendo pessimistas. Devemos seguir lutando, abrindo espaço para fazer novos filmes, acompanhar todas as manifestações com câmeras, com telefones, e fazer um cinema de contestação, de contrainformação. Do mesmo modo que os países árabes utilizam os telefones para mostrar o que está ocorrendo, no Chile todas as repressões policiais foram gravadas por telefones. Ou seja, há que denunciar a criminalidade da polícia, que é muito dura. Lançam jatos de água suja e que pica os olhos. Tudo isso é denunciado com câmeras pequenas ou telefones. Há que utilizar o cinema sempre para denunciar o que faz a polícia. Agora, daí a transformar isso em obras de arte é outro assunto. Ofereceram que eu fizesse um filme sobre o movimento estudantil. Perguntei se eles tinham dinheiro, disseram que não. Respondi que eu tampouco tenho. Sugeri que filmem tudo o que possam, mandam para mim e eu tento montar uma estrutura. Nisso ficamos. Como todo movimento espontâneo, é lento de reações. Veremos o que ocorrerá no futuro. Mas o mais importante é que todos filmem.
Como era o clima de paixão nos primeiros anos do governo Allende?
O primeiro ano foi tão bom porque as fábricas produziram o dobro. Uma grande quantidade de gente que não tinha dinheiro para comprar teve dinheiro. Então eu via os pobres no centro da cidade. Sempre os pobres estavam às margens, não se atreviam a ir ao centro. Em Santiago, o centro se encheu de pobres que andavam contentes, que riam sozinhos. Era uma paixão popular e coletiva, uma esperança que conhecemos muito pouco hoje em dia. Todo mundo queria participar. Todo mundo queria ajudar. Isso era estupendo. Podia-se fazer centenas de coisas sem custos, todo mundo fazia de graça. Era bonito. Os países passam por isso a cada duzentos, trezentos anos, quando se produz um despertar único. Lembro que quando ia a Cuba me diziam que os quatro primeiros anos foram assim, de euforia total, Fidel Castro jovem, nacionalizando as petrolíferas.
O senhor fala sobre o fim da televisão. Como é isso?
É pura especulação, mas acredito que a televisão tal como existe atualmente vai acabar. Não tenho certezas, não tenho provas científicas, mas estou vendo por todas as partes que as grandes cadeias estão caindo, e que estão subindo os canais menores ou a internet. Não é mais necessário uma cadeia gigantesca que começa às oito da manhã e termina à meia-noite dizendo coisas que não interessam a ninguém. Estou seguro que nenhum de vocês assiste à televisão. Para que vão assistir a esta porcaria?
A classe média está muito alheia à televisão latino-americana. Não estou falando de classes sociais. Há um povo pobre que tem grande sensibilidade e que não aceita que lhe ofereçam este lixo, que está farto de programas de concursos e de palhaços. Não somos palhaços. Somos um povo adulto, coerente, e queremos construir um futuro melhor. Esta televisão vai terminar. A tecnologia vai permitir que você baixe o que deseja diretamente de um satélite. Não é necessário uma cadeia dominante. Temos uma televisão completamente norte-americana. Sabe-se tudo sobre a senhora Obama, mas não se sabe nada sobre Marrocos, sobre Síria, sobre a África do Sul. Esta televisão projeta um terrorismo audiovisual. Hoje sabemos que há ecologia. Há vinte anos não sabíamos. Hoje defendemos os direitos da mulher. Há vinte anos não defendíamos. Hoje não fumamos porque sabemos que há câncer. Quem disse que a violência da televisão não provoca a violência das grandes cidades? Algum dia vai se chegar a essa conclusão? É um dos grandes males de nossa civilização latino-americana. Precisamos varrer a televisão obsoleta. Mandemos nossos filhos para que estudem e a televisão os ‘desestuda’. Não pode ser assim.
Por: Leandro Melito e João Peres, da Rede Brasil Atual