Brasília – O Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, a associação Juízes pela Democracia e a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo aceitaram o desafio de investigar as denúncias de violações dos direitos humanos contra os povos indígenas brasileiros cometidas pela ditadura militar (1964-1986), com o objetivo de dar subsídios para que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) possa destrinchar o assunto no seu relatório final.
A pesquisa mal ainda está no início, mas já aponta indícios da prática de crimes graves, como o extermínio de aldeias inteiras, via fuzilamento, inoculação de doenças por roupa ou comida contaminada com doenças e lançamento de bananas de dinamite por aviões. Há também denúncias sobre existências de campos de concentração, centros de tortura e prisões ilegais, como a cadeia indígena de Krenak, em Minas Gerais.
“São denúncias graves que impactam, inclusive, na forma de se fazer justiça de transição no Brasil”, afirma Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, responsável pelo site Armazém e Memória, e coordenador da pesquisa “Povos indígenas e ditadura militar – subsídios para a CNV (1946-1988)”.
Confira a entrevista com Marcelo Zelic:
- Por que essas entidades decidiram se debruçar sobre o extermínio de nações indígenas pela ditadura brasileira?
Nós começamos a pesquisar o assunto a partir de uma demanda de um blog indígena, o Resistência Indígena Continental, que nos perguntou por que a gente só tratava de mortos e desaparecidos não índios. Para nós, foi uma porrada, uma surpresa. “Desculpa aí, mas do que vocês estão falando?”, questionamos. Começamos a nos corresponder com estes indígenas, trocar e-mails, documentos, e iniciou-se o processo de conversar com outras entidades. Assim, além do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, entraram também a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, que tem dois membros dentro da CNV, Paulo Sergio Pinheiro e Jose Carlos Dias, e a associação Juízes pela Democracia.
- Qual foi o ponto de partida da pesquisa?
No início, não tínhamos um rumo muito certo e decidimos começar a pesquisa a partir de pronunciamentos feitos pelos parlamentares no Congresso Nacional, que são documentos oficiais. Passamos a fazer uma triagem e selecionamos mais de mil discursos a serem aprofundados, em que a questão de violação de direitos humanos indígenas no período estão colocadas. A partir do pouco que começamos a tabular, vimos que a abrangência é muito grande. Temos 17 estados com massacres, chacinas e violações.
- Essas primeiras informações colhidas já foram apresentadas à CNV?
Sim, nós fizemos uma reunião com a CNV para apresentar os primeiros indícios levantados. O Paulo Sergio Pinheiro, que está muito sensível para isso, convidou a Rosa Maria, o João Carlos Dias e a Maria Rita Kehl. Houve uma sensibilização muito grande, porque eles viram que é um tema que a CNV não pode maltratar. De lá pra cá, várias conversas foram feitas, que culminaram na indicação da Maria Rita Kehl como membro responsável pela sistematização da questão indígena, junto com a camponesa, dentro da CNV. Agora, a pedido da comissão, estamos sistematizando um plano de trabalho, que deverá ser apresentado nos próximos dias.
- Já há uma previsão de quais serão os eixos de trabalho?
O primeiro é tabular os discursos dos deputados, usando uma metodologia do Brasil Nunca Mais que foi exitosa nos anos 1980. O segunda, fazer o mesmo com os discursos dos senadores, já que a base dados é diferente. Desses discursos, esperamos tirar elementos para preencher dois outros eixos: o dos casos que envolvam confrontos diretos de povos indígenas com forças armadas e entes do governo, e o dos casos em que o conflito se dá em função das políticas de desenvolvimento implantadas durante a ditadura. São casos distintos, que têm que ser analisados separadamente. Existe um outro eixo de pesquisa que propõe este mesmo inventariado de conteúdo que estamos fazendo nos discursos, mas com as CPIs oficiais do estado. Nós já pedimos a documentação referente à CPI do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) de 1963/1963, das CPIs do Índio de 1968 e de 1977 e do levantamento e localização do acervo da Comissão de Investigação do Ministério do Interior de 1967/1968, que gerou o Relatório Figueiredo.
- O que é o Relatório Figueiredo?
É um relatório chave para a discussão sobre violações de direitos humanos dos indígenas do Brasil, porque demarca um momento em que as denúncias de genocídio estavam correndo mundo, pouco antes do AI-5. Foi produzido pelo procurador-geral da República da época, Jader Figueiredo de Correa. Com 5.115 páginas, apresentava denúncias sobre desvios de dinheiro público dentro do SPI, sobre a corrupção que se instalou com relação à exploração das riquezas indígenas e de seus territórios, bem como sobre as graves violações de direitos humanos perpetradas contra aldeias inteiras e contra indivíduos de forma seletiva, especialmente caciques e lideranças. No documento, o procurador mostrava o envolvimento dos agentes de estado, muitos deles militares, nas práticas desses crimes. Mas, pelo que descobrimos até o momento, o que sobrou desse relatório são matérias de jornais, feitas pelos jornalistas que estiveram presentes na coletiva de imprensa realizada pelo procurador-geral em março de 1968.
- Por quê? Vocês não conseguiram acesso ao relatório?
Não. As matérias de jornais apontam que o relatório, e os inquéritos dele decorrentes, foram todos queimados pelos militares. Mas a CNV terá que saber o que aconteceu com essa documentação e com essas pessoas. São várias as matérias de jornal sobre a coletiva, que nós tivemos acesso por meio do acervo do Museu do Índio, no Rio. E não foi só a imprensa internacional que cobriu, o que desmonta a tese levantada pelos militares na época de que essas denúncias eram coisa vinda de fora para desmoralizar o regime.
- Com base nessas matérias, é possível recuperar, pelo menos em parte, o conteúdo das denúncias do Relatório Figueiredo?
Sim, as matérias denunciam fartamente os genocídios apontados pelo procurador-geral no relatório como, por exemplo, casos de aldeias que foram exterminadas com bananas de dinamite jogadas de aviões e de fuzilamentos de índios que se opunham as ações do estado. São inúmeros casos, em várias partes do país, nos quais se vias estas mesmas práticas.
Outro exemplo foi a inoculação de doenças nos indígenas, tanto por roupa quanto por comida contaminada. São práticas que o procurador denunciou de público. Já na justificativa da Resolução 65 da Câmara, que criou a CPI do Índio de 1968, encerrada depois com o AI-5, os deputados citavam que o major Luiz Vinhas exterminou duas tribos pataxós inteiras, inoculando varíola na população, para tomar suas terras. Esse major, depois de uns meses, foi processado pelo procurador-geral e perdeu o cargo de diretor do SPI, onde chegou pelas mãos do ex-presidente Castelo Branco. Ele foi processado na Polícia Federal, junto com outros 23 pessoas que também trabalhavam no SPI. Mas não temos notícia do que aconteceu com elas. Notícias publicadas dão conta de que elas fugiram, deram um jeito de não responder pelos crimes, mas a gente vai ter que apurar isso melhor.
- O fato da CNV ter incluído a questão indígena nas suas investigações é um passo importante para a apuração desses crimes?
A CNV deu um passo corajoso, um passo a frente, crucial para isso. Há denúncias estarrecedoras, também, sobre a existência de campos de concentração, centros de tortura, prisões ilegais. Exemplo é o presídio indígena de Krenak, denunciada por Antonio Cotrim, uma pessoa ligada à Funai, que pediu as contas porque não queria exterminar índios. E denunciou a existência de uma cadeia indígena, para onde eram levados não só indígenas alcoólatras, ladrões de gado, que produziam determinados tipos de violência ou até mesmo morte, mas também índios que resistiam a determinados projetos de governo.
- E quando funcionou essa cadeia indígena?
Isso foi de 1969 a 1975, mais ou menos, em Minas Gerais. Quem cuidava dela era a PM de Minas, que também criou uma guarda indígena para fazer o trabalho de prender gente na aldeia. É importante ressaltar que isso levanta uma questão muito grande com relação aos paradigmas da justiça de transição no Brasil. Uma denúncia do Jornal do Brasil, em 1972, aponta que nesta cadeia se praticavam violências absurdas contra os presos, e estamos falando de uma cadeia que, até hoje, nenhum grupo de direitos humanos apontou como um centro de tortura no Brasil. Nós falamos dos DOI/CODIS, nos falamos da Casa de Petrópolis, dos centros de torturas dentro dos quartéis, mas há um silêncio absoluto sobre as cadeias indígenas espalhadas pelo Brasil. Tanto as oficiais, como a Krenak, como as clandestinas. Nossas pesquisas apontam, por exemplo, indício da existência de uma cadeia no território ianomâmi, em Rondônia. É preciso que CNV investigue estas questões, traga luz e verdade sobre esses fatos e, fundamentalmente, a reflexão sobre esses novos paradigmas para a justiça de transição no Brasil.
- Como essas descobertas podem alterar os paradigmas da justiça de transição no país?
O que se faz com um indígena que foi transformado em policial? De quem é a responsabilidade sobre as violências perpetradas por este indígena, sob o comando da Polícia Militar de Minas Gerais? Como a gente repara a vida dessas pessoas? Não só a vida de quem sofreu nas mãos deles, mas a vida deles mesmo, que foram arrancados de sua cultura, transformados em policiais militares e “ensinados” que a violência e o arbítrio eram práticas normais? Depois que a guarda foi extinta, muitos deles viveram em ostracismo dentro da própria aldeia.
- Embora as pesquisas ainda sejam insipientes, já é possível ter uma estimativa de vítimas indígenas ditadura?
Neste momento da pesquisa ainda não estamos falando em números. É muito cedo pra isso. Mas o que já deu pra ver, por exemplo, é grave. O indigenista Egídio Schwade, por exemplo, fala em dois mil waimiri-atroaris mortos. Darcy Ribeiro fala em cinco mil ianomamis. Os parakatejês eram 1,8 mil e, depois de dez anos, sobraram 200 pessoas. São números esparramados que ainda precisavam ser comprovados. Mas nós temos claro que estamos tratando é de genocídio. Não é outra coisa. E um genocídio implementado por uma política de desenvolvimento que, muitas vezes, a troco de fazer os negócios do estado, declarava uma área livre de indígenas, para que as empresas interessadas pudessem levantar empréstimos e atuar no local. Precisamos focar que é um assunto delicado para o país. A gente tem um silencio absoluto sobre isso, porque são muitas forças estão envolvidas.
- E como está o envolvimento das organizações indígenas na pesquisa?
Temos conversado, trabalhado junto. É o início de uma relação que o Tortura Nunca Mais não tinha, mas que, evidentemente, não é empecilho para o desenvolvimento o trabalho. Vencida a prioridade de convencer a CNV a incorporar o tema, agora queremos buscar maior colaboração da sociedade civil, principalmente por meio da internet. Vamos lançar uma campanha de cadastramento de cidadãos e cidadãs que queiram participar colaborativamente, para que a gente possa ler e tabular esses documentos mais rápidos, criar mutirões de pesquisas nos arquivos. Neste caminho, estamos construindo uma relação com as lideranças indígenas. Na Rio+20, conversamos com vários caciques e lideranças nacionais, buscamos contato com o Tiuré Potiguara e outros que possam articular o tema dentro do meio indígena. Mas nossa ação, enquanto movimento de direitos humanos, é levantar e coordenar uma ação para dar subsídio a CNV. Não estamos coordenando um movimento indígena. Não temos pretensões de nada disso. O fato é que ficamos muito tocados e chocados com o volume de denúncias de fatos graves de violações e o tamanho da barbárie que se instalou no Brasil, desde sempre, contra essa população.
*Por Najla Passos
Cara Najla, boa tarde,
gostaria que repassasse o e-mail acima ao Marcelo Zellic (não trabalho com auto-peças, o que muito me honraria, uso esse por questão de segurança), estou com dezenas de horas de depoimentos feitos em comunidades diversas de etnias diferentes sobre tais reformatórios,especialmente o Reformatório Guarani, para onde, por exemplo, a serviço da Aracruz Celulose se removeram comunidades inteiras, com a de Irajá. Meu reparo é que esses núcleos de controle e repressão duraram muito mais tempo, ao menos o Guarani (não vou precisar a data, pois as entrevistas são de 2008), o Toninho Guarani (Werá), por exemplo, passou a infância ali – me passando ricos detalhes, tais como nomes de envolvidos que tornou a busca muito mais fácil depois – e não tem idade para ter estado antes de 76. Além do que, não lembro ano certo, repito, a fala de outras lideranças menciona uma libertação muito posterior.
O outro reparo que faço é que, se alguém quer realmente investigar genocído, não pode se fixar em 1988, o genocídio ocorre hoje, sob omissão dos meios de comunicação e aval do Estado Brasileiro (e nem trato aqui de Belo Monte e hidrelétricas), tenho feito registros desde 2006, nos mais diversos estados da federação. Hoje mesmo, dia 07 de setembro, quando não há atividade no fórum, há um transitado e julgado – de crime sem qualquer comprovação de ocorrência nem testemunho, a não ser do interessado (fazendeiro interessado na reintegração de posse, que já se deu ao arrepio da lei, e CUNHADO do magistrado em questão) nem sequer vítima, a não ser o direito à verdade – marcado HÁ QUATRO MESES sem que FUNAI ou o próprio réu fossem notificados, os meios de comunicação locais são da família do interessado, o coordenador da funai à época – corrupto – era, de algum modo, sócio do denunciante e as coisas foram se dando e só foi descoberto que o processo está rolando agora, não é apenas isso, é muito mais – porém, cito porque isso me mobiliza hoje e não houve divulgação, na época para proteger as famílias indígenas de uma possível retaliação, no caso, uma ameaça real, agora, os criminosos achando que “ninguém sabe”, se empolgaram e foram além….
A verdade dói, mas liberta. O tratamento dado pela a Ditadura aos dissidentes políticos, índios considerados problemáticos, comunistas e indesejados (favelados, gays e doentes mentais incluídos), com uso de tortura, segregação, confinamento, “reeducação” e execução, fez do Brasil um pequeno Reich Nazista de 1964 a 1988.