Dois cientistas da Universidade de Brasília (UnB) receberam dia 15/9, em Washington, Estados Unidos, o prêmio mais importante em Saúde Pública nas Américas: o prêmio “Fred L. Soper” para a “excelência em literatura sobre saúde pública” que é anualmente oferecido pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). A OPAS reconheceu neste ano, como o melhor trabalho publicado no meio científico especializado, o estudo “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”, feita pelo economista e sociólogo Marcelo Medeiros e pela antrópologa Debora Diniz, ambos professores da Universidade de Brasília (UnB) a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Aborto, elaborada e organizada por eles em 2010. A pesquisa revelou, entre outras coisas, que mais de um quinto das mulheres do país (22%) fazem pelo menos um aborto até o fim da vida reprodutiva.
Entre os méritos do trabalho, financiado pelo Ministério da Saúde, está a identificação da magnitude do aborto no país. Na cerimônia, os pesquisadores receberam um prêmio de U$ 5 mil.
O estudo constatou, de forma confiável pela primeira vez no Brasil, que uma em cada cinco mulheres de 35 a 40 anos, já interrompeu a gravidez ao menos uma vez na vida, ou 22% delas. Sendo que, metade delas teve de ser internada. “Esses resultados tiraram o debate de uma discussão moral para uma constatação científica, e mostra claramente que é uma questão de saúde pública”,”, disse Medeiros. “É uma quantidade gigantesca”.
Até hoje, nem o Ministério da Saúde, nem o SUS, nem nenhuma organização tinha uma estatística confiável sobre o assunto. Costumava-se usar o número de 200 mil curetagens feitas no SUS por ano, multiplicando-as por cinco para estimar o fenômeno do aborto. “O dado era frágil, obtido por um método indireto. Nosso estudo funciona como uma pedra fundamental nesse tema porque traz um dado definitivo e uma metodologia confiável”, explica Debora.
A pesquisa mostrou também que a mulher que aborta é uma mulher “normal”. Entre as que admitiram ter induzido o aborto em algum momento, há mulheres casadas e mães de família. Isso não quer dizer, no entanto, que elas já eram mães quando abortaram.
Porém ainda hoje, o aborto é considerado crime pela lei brasileira, exceto em casos de estupro, de risco à vida da mãe e de fetos anencéfalos (sem cérebro).
“É problema de Saúde Pública, sem dúvida”
Para o Marcelo, é a clandestinidade que transforma o aborto em um problema de saúde pública. A pesquisa revelou que o método mais usado para induzir o aborto é um medicamento chamado Misoprostol” que, embora mesmo sendo de uso ilegal no Brasil, seu uso como abortivo é reconhecido nos lugares onde o aborto é legalizado. “O maior problema no Brasil é a falta de acompanhamento médico das mulheres que o utilizam.” – Medeiros apontou dois principais problemas nesse sentido. Primeiro, a falta de orientação pode levar a um erro na dose. Além disso, o medicamento provoca uma hemorragia, cujo tratamento exige internação em hospital. Cientes de que fizeram um ato ilegal, muitas mulheres evitam procurar ajuda profissional nesses momentos, alertou o pesquisador.
“A mortalidade é baixa, muito menor do que foi no passado. O que tem [de problema] são as complicações [pós-aborto]”, declarou.
Metodologia complicada, mas eficiente
Segundo a antropóloga Diniz, a metodologia foi o item mais trabalhoso na pesquisa, que durou dois anos. “Era preciso convencer as mulheres a contar se fizeram aborto, que já é um tema delicado por si só, ainda mais em um país onde a prática é considerada crime”. Dessa dificuldade surgiu a idéia de usar a técnica de urna, contou ela. As entrevistadas respondiam a um rápido questionário sociodemográfico oral e, depois, nos moldes de uma eleição, recebiam uma cédula com cinco perguntas específicas a respeito da interrupção da gravidez. Preenchiam o papel e o depositavam na urna vedada. “Explicando assim, pode até parecer uma metodologia simplória, mas, na prática, as dificuldades começaram bem antes do trabalho de campo, que alcançou 2 mil entrevistadas em todo o Brasil, exceto em uma parte da área rural”.- declarou.
Outro ponto problemático, segundo Debora, foi elaborar a cédula. “Parece uma coisa tola, mas pode invalidar toda a pesquisa se os entrevistados não entendem o que estamos perguntando. E isso foi constatado no pré-teste, todo ele realizado em Ceilândia (no Distrito Federal), quando perguntávamos na cédula: ‘Qual a sua idade?’, seguido de dois quadradinhos para serem preenchidos. Em vez de colocar a idade, muita gente escrevia o ano de nascimento. Outro problema era deixar claro que, respondendo ‘não’ à primeira pergunta — ‘Você já fez aborto?’— chegava-se ao fim a pesquisa. Ou seja, a pessoa não precisava responder às outras quatro questões”, conta a antropóloga.
A solução veio de uma diagramadora visual da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), especialista em pesquisa com população de baixa escolaridade, que redesenhou a cédula. Depois de preparar o material para a pesquisa, a dupla contratou o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), para aplicar o questionário e compilar os resultados. Segundo o sociólogo Medeiros, a técnica usada foi “amostra probabilística aleatória”, que possibilita projetar os resultados para o país inteiro, com margens de erro muito pequenas — mesmo método usado nas pesquisas eleitorais feitas atualmente no pleito municipal. “Foram escolhidas apenas mulheres para os 192 postos de entrevistador, exatamente para facilitar a abordagem. Outras 40 pessoas, aproximadamente, participaram das diversas etapas do estudo em funções diversas — da confecção das urnas à aplicação dos pré-testes” – disse Medeiros.
Efeito nas Américas
Criado em 1990, o “Prêmio Fred L. Soper à Excelência em Literatura sobre Saúde” promove o mais alto padrão em pesquisas que tragam contribuições significativas para as Américas. Um corpo de jurados analisam artigos indicados pela comunidade científica. O prêmio leva o nome do epidemiologista americano Frederick Soper, doutor pela Escola de Saúde Pública da Universidade John Hopkins e autoridade mundial em doenças como malária, varíola e febre amarela.
*Arney Barcelos, para o Fato Expresso.