Por Márcio Amêndola de Oliveira*
CENA 3
1972. Meu avô José Osório de Oliveira era o oposto do italiano Cármino Amêndola, tão severo e carrancudo, fumante inveterado, que três anos antes havia morrido de ‘bronquite’ (não se dizia ‘Câncer’ de pulmão, expressão proibida). José Osório, o Vô Zé, ao contrário, era candura total. Alfaiate de profissão, também acumulava no distrito de Tarumã (quase divisa com o Paraná), a 13 quilômetros de Assis, os cargos de Juiz de Menores (como meu pai o foi em Pedro de Toledo) e Oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (o que seriam pessoas ‘artificiais’? perguntava-me, mas não ousava perguntar a outrem, para não parecer ignorante, do alto de meus 12 anos).
Meu avô era a grande autoridade da pequena vila. Isso valia entradas grátis no velho e empoeirado cinema, que passava quase que somente filmes de Mazzaroppi (que eu adorava) e atendimento preferencial (e gratuito) nas barracas de quermesses. Numa dessas festas, lembro-me como se fosse hoje, meu avô com sua enteada Dirce (que perdemos de vista na dura vida), dançando a valer, rindo e rodopiando, como um Fred Astaire dos trópicos.
Certa vez, naquele ano do ‘Sesquicentenário da Independência’, do qual orgulhosamente participei de uma ‘Demonstração de Ginástica Rítmica’ incentivada pelo Exército, meu avô veio a ter-se comigo, perguntando se aceitaria um trabalho para ganhar algumas abobrinhas (notas de 1.000 Cruzeiros, também conhecidas como ‘Cabral’, por ter o gajo estampado). Aceitei o serviço, apesar de não saber exatamente quanto receberia, já que as tais ‘abobrinhas’ já não faziam parte do meio circulante, e eram cacoetes do passado de meu avô. (Seria mais ou menos, como dizer hoje que não vamos gastar ‘nenhum tostão’).
Fui ao sítio, e percebi o problema. Teria de carregar pedras, literalmente num carrinho de mão, entre a entrada e a casa nova, em construção. Na verdade, tijolos, milhares deles. Aceitei e fiquei por volta de uma semana fazendo isto sozinho, gerando calos e feridas nas mãos e pés, e dores indescritíveis pelo corpo. Aos meus 14 anos, pouco antes de meu avô morrer num acidente terrível (juntamente com minha tia e um irmãozinho meu), ele me confidenciou que apostava se eu seria capaz de carregar sozinho, aqueles milhares de tijolos. Se pudesse fazer isto aos doze anos, poderia realizar qualquer coisa. Nem me lembro do quanto ganhei (tomei sorvete e fui ao cinema por uns dois meses!), mas ainda acho desconcertante que um avô tão querido tenha me dado tarefa de adulto, justo eu, um menino tão franzino, de 30 quilos, no máximo. A casa de tijolos, enorme, na qual iriam morar minha tia Clélia e meu avô José, jamais foi concluída. Sua construção foi interrompida pelo destino, naquele trágico 28 de junho de 1975, quando perdi três de meus mais queridos parentes.
Durante minha estada na casa de meu avô encontrei um velho álbum com as fotos da família. A lida no sítio, cheio de galinhas, porcos enormes, dois cavalos, uma vaca leiteira e um imenso pomar de mangas espada, rosa, coração de boi. Também vi fotos da família, das crianças molecando no quintal, das festas.
Um álbum de fotos comum, não fosse a intrigante imagem de meu avô, muito jovem, entre dois de seus dez irmãos. Os três ali, sorridentes, fardados, e pouco abaixo dos ombros, um símbolo, que depois soube chamar-se ‘Sigma’, um símbolo grego que quer dizer mais ou menos, soma de valores. Meu avô sorriu ao ver-me olhando fixamente para a foto. Perguntei se era uma foto dele no Exército, no que me respondeu: – Mais ou menos. Nossa tropa chamava-se Integralista. E Disse que eles tinham até uma saudação: “Anauê!”, que em Tupi significava “Você é meu irmão”.
Perguntei mais, porém ele desconversou.
Anos depois, ao saber do que se tratava, senti-me meio traído pelo destino. Justo eu, um homem de esquerda, tão compenetrado com as ideias socialistas, tinha dois ancestrais ligados ao fascismo. Mas o que ficou da imagem de meu avô paterno não foi essa foto dos integralistas, mas sua candura, sorriso farto e aparência tão frágil.
(Continua no próximo capítulo….)
(*Márcio Amêndola é jornalista e historiador)
Beleza de crônica, Márcio. Anauê!