Em algum momento ele deixará a Presidência da Venezuela. Que país é construído?
Andar pelas praças de Caracas e conversar com os venezuelanos permite perceber o apoio popular que dá sustentação ao presidente. Desde que ele venceu a primeira eleição presidencial, a mudança de postura do governo com relação à sociedade confere bases sólidas a Hugo Chávez. A cada pronunciamento, o comandante ressalta a importância de o povo manter-se informado e aprender a intervir na política. Símbolos da independência venezuelana – como Simón Bolívar, Antonio Sucre, Francisco de Miranda – e a lembrança da história do país foram incorporados ao vocabulário cotidiano e dão fôlego ao sentimento nacionalista.
No início do século 19, Bolívar liderou batalhas de independência da colonização espanhola. Chegou a comandar a criação de uma república que unificava territórios de países, mas duraria pouco tempo.
A partir de 1831 a desagregação político-territorial da Grã-Colômbia deu à Venezuela o contorno que tem hoje, e também uma sucessão de governos submissos às potências econômicas. Chávez chegou ao poder em 1998 e passou a defender a “Independência para sempre”, slogan pintado em diversos muros de Caracas. E foi convincente, ao apoiar trabalhadores a ocupar a gestão de fábricas, autorizar comunidades a montar emissoras de rádio e incentivar cidadãos a participar das decisões por meio dos plebiscitos e dos conselhos comunitários. “O povo despertou das sombras”, diz um livreiro, sobre a chegada do comandante ao Palácio de Miraflores.
Pela Praça Bolívar, a principal de Caracas, passam milhares de pessoas. Muitas param para ler o Cidade de Caracas, jornal de maior circulação na capital, gratuito. Seu foco é a política e o noticiário da América Latina, e em torno desses temas giram as conversas na praça. “O povo entende que é a política que move a sociedade. E Chávez estimula o povo a participar politicamente”, diz um vendedor de DVDs na tenda Esquina Calliente.
Embora a maior parte da capital seja chavista e respire política, os bairros ricos refletem, nos muros, ruas e praças, o abismo político, econômico e social que separa ricos e pobres. Em Altamira, o mais abastado, é onde menos se veem referências a questões políticas. Enquanto os muros dos outros bairros são grafitados com temas da independência e da esquerda mundial, os dali são pichados. Enquanto bancas de revistas da região central exibem publicidade comemorativa ao bicentenário da independência, as de Altamira fazem ode ao consumo. Enquanto na região central as pessoas se locomovem de metrô, em carros que parecem desmanchar-se ou em pequenos ônibus velhos, ali só circulam carros importados.
É nos bairros mais endinheirados que está a oposição. Os “esquálidos”, como o presidente os chama, também estão em outras regiões ricas do país, como a zona petroleira de Zulia. Em julho, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) oficializou o subsolo venezuelano como a maior reserva comprovada do óleo. A partir dessa reserva, elites enriqueceram, e hoje é também dela que Chávez obtém recursos para investir nos setores sociais carentes, como segurança, saúde e moradia.
A disputa pelos recursos do petróleo é um dos pontos nevrálgicos do embate com a oposição. Chávez já resistiu até a uma tentativa de golpe em 2002, que contou com a participação da grande mídia privada e dos mesmos partidos que em 2012 buscarão a via eleitoral. A Mesa de Unidade Democrática, coalizão conservadora, se apresentará com candidato único contra o chavismo.
Poder em disputa
Agora, nem mesmo os governistas têm certeza se resistirão a mais um teste das urnas, dados os problemas que o país enfrenta e tendo também como adversário o medo da inflação, do desemprego e da violência.
A moradia é outro tema caro à população. A oposição lembrará que o déficit habitacional continua; a situação dirá que já foram concluídas 300 mil casas populares, subsidiadas, e que outros 2 milhões serão entregues até 2017, o que cobriria o déficit atual.
Se as conquistas sociais alcançadas nos últimos anos não bastam para conferir confiança à continuidade do chavismo, o governo conta com o nível de informação e politização do povo. Em 2005, após uma intensa campanha de alfabetização iniciada em 2003, a Venezuela foi declarada pela Unesco “território livre de analfabetismo”. As pessoas aprenderam a ler e têm o que ler. Há 57 Librerias del Sur espalhadas por todo o país, vendendo especialmente livros de história, sociologia e também literatura de ficção, poesia e obras infantis – com preços subsidiados e mais acessíveis.
A organização em coletivos é outro recorrente mecanismo de participação dos venezuelanos na política. Grafitagem em muros, emissoras comunitárias de rádio e TV, promoção de debates, saraus, encontros e edição de livros compõem uma grande rede “horizontal” por meio da qual a população se manifesta e influi na complexa dinâmica social. Apesar de o governo estimulá-los, inclusive com injeção de recursos, esses grupos acabam atuando com independência em relação ao Estado.
Oscar Sotillo, liderança de um dos mais fortes coletivos do país, o La Mancha, explica a relação com o governo: “Somos construtores da revolução bolivariana no dia a dia, mas somos independentes do Estado, somos críticos, acreditamos que se deve abrir espaço para a cidadania, para botar nas mãos das pessoas o conhecimento, as ferramentas, a tecnologia, para que as pessoas façam seus próprios conteúdos, suas próprias notícias, jornais, programas de rádio, para assim enriquecer o terreno comunicacional do país”.
Apesar dos avanços sociais e políticos, uma parte da esquerda ainda avalia se os últimos 12 anos de chavismo não teriam sido apenas remendo de capitalismo. “Aqui se luta contra o inimigo tradicional, a burguesia exploradora do povo, mas também contra a burocracia, que confisca poder, confisca participação, e hoje é o principal obstáculo para avançar na transição ao socialismo”, afirma Zuleika Matamoro, coordenadora do portal de notícias Aporrea e integrante da direção nacional da Marea Socialista, uma corrente dentro do partido de Chávez, o PSUV.
Zuleika não teme os conservadores. Para ela, é maior a preocupação com eventuais retrocessos dentro da estrutura do chavismo do que com o discurso da oposição, que pouco mudou desde 1998: “A direita neste país não tem vida. Tem uma base social, mas não tem espaço no povão. Pode manipular sua base social, mas há um sentimento majoritário de que não se deseja voltar para trás”.
Esse sentimento é uma das características da personalidade política venezuelana que contribuiram para a popularização dos projetos introduzidos por Hugo Chávez. Com a ampliação do respaldo popular, inclusive contra algumas tentativas de golpe, resta à oposição conservadora essa unidade sem precedentes para retomar o poder por meio do voto. Hoje, no entanto, o maior desafio pessoal do comandante não parece ser o ímpeto oposicionista.
O presidente admitiu, em meados de julho, que tem câncer. Foi mais de uma vez a Cuba e segue em tratamento em seu país. Com a cabeça raspada, aparenta ter ganhado maior apoio popular. A oposição já disse que Chávez estava morrendo, já o acusou de inventar a doença e voltou a dizer que o presidente estava à beira da morte.
Ao negar por muito tempo o câncer, mesmo depois de diagnosticado, o governo acabou contribuindo para o clima de desinformação. Não se sabe quando as informações são confiáveis. O que se sabe é que, qualquer que seja a real situação, Chávez – sua liderança ou seu legado – ainda será o fio condutor do pleito do ano que vem, sobretudo se conseguir conservar no interior das forças de sustentação do governo a mesma unidade que a oposição parece estar alcançando.
Por: Alexandre Haubrich