Mulheres que tiveram filhos executados desde 2006 têm na busca por justiça sua razão de viver. O fim do termo “resistência seguida de morte” nos BOs das ações da polícia de São Paulo é um filho dessa luta
“Já consegui o pedreiro para arrumar o quintal, mas ele precisa de duas semanas, e não consigo ficar aqui”, diz, rindo, Débora Maria Silva, prestes a sair mais uma vez de sua casa em São Vicente, litoral de São Paulo. Desta vez, irá acompanhada da reportagem da Revista do Brasil. Vamos ao encontro de outras mulheres que, como ela, tentam na luta por justiça remediar a dor da perda de filhos mortos pelo Estado. Débora é fundadora do movimento Mães de Maio. Minutos antes de espairecer com a situação precária do quintal, contava como tem sido sua vida sete anos após o assassinato do filho Edson Rogério da Silva, aos 29 anos, em 15 de maio de 2006.
Ao lado de Débora, na sala modesta, está Vera Lúcia dos Santos, que também perdeu a filha naquele mês. Sobre os móveis há vários jornais do litoral e da capital. “Eu me tornei pesquisadora de homicídio”, conta. De 12 a 20 de maio de 2006, pelo menos 493 pessoas foram assassinadas. Entre elas, 43 agentes de segurança – bombeiros, guardas municipais e policiais –, em decorrência de uma onda de ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) a desafiar o sistema de segurança pública do estado.
De acordo com evidências levantadas por organismos não governamentais, as demais 450 pessoas teriam sido executadas por policiais. Relatórios do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, da Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard revelam que as execuções ocorreram em represália às ações do PCC – em supostos “gestos de resistência” a perseguições policiais ou em ações de grupos de extermínio formados por policiais encapuzados. Os sinais de execução: 60% dos mortos tinham pelo menos uma bala na cabeça, 46% tinham projéteis em outras regiões de alta letalidade e 57% das vítimas foram baleadas pelas costas.
Edson Rogério abastecia sua moto quando policiais o agrediram. Um carro de polícia o “socorreu”. Minutos depois, ele apareceu morto em uma rua próxima ao posto. Débora conseguiu provar que o Estado não investigou o caso como deveria. A Justiça reconheceu que o Estado havia matado seu filho, mas não apontou os assassinos por falta de provas. Uma das mais importantes era uma bala cravada na coluna cervical. No laudo pericial feito na época do crime constava que não havia ferramentas para retirá-la. O caso foi arquivado, como todos os outros daquele período.
Seis anos depois
No ano passado, Débora conseguiu que o corpo fosse exumado e a bala, localizada. “O que mata muito mais a gente é a impunidade. Quem matou nossos filhos tem nome, sobrenome e identidade. Eu paguei a bala que matou meu filho. É o que mais me corrói. Paguei a dor de retirarem meu filho…”, constata, e segue seu relato.
“Há seis anos eu vivia dentro da coluna cervical do meu filho. E a dor de saber que ele tinha um projétil alojado na espinha e aquele era o único modo de saber qual revólver matou meu filho? Eu comia as unhas das mãos de sangrar! Não vivia, vegetava. Gritava que o projétil estava dentro da espinha do meu filho e tinha de ser retirado. Ouviram a minha voz depois de muito grito. A resistência faz parte da mãe. A mãe tem o dever de não se curvar para um Estado como este, que deveria proteger nossos filhos. Conviver com o luto é uma situação que não dá para explicar. Não desejo isso nem para a mãe do assassino do meu filho. Então tenho de lutar para que outras mães não sintam essa dor. Não tenho raiva de quem matou meu filho. Preciso avançar. O ódio não vai trazer meu filho, só vai me consumir. E não vou dar esse gosto.”
Depois de perder Rogério, Débora ficou doente e precisou ser internada por quase 40 dias. No hospital, diz que uma visão do filho a incitava a lutar. “Saí e já fui atrás das outras mães”, lembra. Santos e São Vicente são cidades vizinhas e pequenas, comparadas a São Paulo. Nas duas, 27 pessoas foram assassinadas naqueles dias, e ali nasceu o Mães de Maio. A primeira a se aliar a Débora foi Ednalva Santos, a Nalva. No Dia das Mães daquele ano, seu filho levou dez tiros, disparados por homens dentro de um carro preto. Algumas pessoas viram o rosto de alguns. Contaram a ela que se tratava de policiais, mas nunca tiveram coragem de testemunhar oficialmente, como na maioria dos casos. “Ela chegou e perguntou se eu queria lutar com ela. Ir atrás de quem matou meu filho. Aí a gente se uniu.”
Foram a fóruns, delegacias, à Defensoria Pública e ao Condepe. Sem condições emocionais de trabalhar e sem dinheiro para a peregrinação, chegaram a passar fome. Nalva conta que em 2007 foi presa em represália a sua busca.
Policiais militares foram procurar drogas no bar onde ela trabalha com o companheiro servindo lanches e marmitas. “Um deles perguntou se eu não ia parar de fazer acusações de que a polícia havia matado o meu filho”, conta.
Vera, que perdeu a filha, virou “pesquisadora de homicídios” (Foto: Danilo Ramos/RBA)
“Eu disse que ia denunciá-lo à Corregedoria por ameaças. Daí eles foram embora.”
No dia seguinte, o casal foi abordado por policiais civis. “Apontaram arma para a cabeça do meu companheiro dizendo que tinham recebido denúncia dos amigos de farda”, lembra. “Não acharam nada. Um deles apareceu com uma sacola de drogas na mão dizendo que tinha achado lá nos fundos. Prenderam a mim, meu companheiro e dois fregueses que estavam aqui. Fiquei oito dias presa. Acusação de tráfico e formação de quadrilha. Daí a Débora foi fazer minha defesa”, ri.
Doutora popular
“Eu fiz a defesa da Nalva e entreguei para a Defensoria. Eles deram entrada na defesa do jeito que entreguei. Às 9h do dia seguinte ela estava solta. Inédito isso. O juiz deu que a prisão tinha sido arbitrária”, conta Débora, que tem “loucura para fazer Direito e ser uma doutora popular”. Tudo que sabe aprendeu nas idas e vindas à Justiça, na conversa com outros militantes. “Eu sou muito ligeira. Meu apelido lá no Jóquei (bairro de São Vicente) era Cabulosa. Imagina que boazinha eu era?”, brinca. Mas a faculdade é sonho difícil.
Débora recebe uma pensão de R$ 350 do ex-marido, com quem ainda divide a casa. O casamento acabou em grande parte por conta da militância. O Mães de Maio é apoiado por uma rede de solidariedade que inclui grupos como o Tortura Nunca Mais, sindicatos, o Fundo Brasil de Direitos Humanos e a Fundação Rosa Luxemburgo, que colaboram com transporte, alimentação e divulgação.
A rede financiou ainda dois livros publicados pelo movimento, e sua venda também ajuda a manter as atividades. “A militância tomou conta de tudo, me consome e me alimenta ao mesmo tempo”, resume Débora. Nalva não é a única das Mães que foi presa. Em 2009, Vera Lúcia dos Santos, a terceira a compor o movimento, foi acusada de tráfico e condenada a oito anos de prisão. Cumpriu três em regime fechado. Dois dias depois de sair, foi para um ato das Mães em frente ao Fórum da Barra Funda, em São Paulo. “Se acharam que iam me intimidar, se enganaram.”
Vera perdeu três pessoas de sua família no dia 15 de maio de 2006. A filha, o genro e o bebê que esperavam. Ana Paula faria uma cesariana no dia seguinte para dar à luz Bianca. Nos protestos de que participa, Vera carrega uma chapa de ultrassom, a “foto” da neta que não chegou a nascer. Obra de policiais encapuzados, segundo testemunhas. “Disseram que ele pediu para liberarem a minha filha porque ela estava grávida e responderam: ‘Ah, ela tá grávida? Tava’. E atiraram. Meu genro se desesperou e começou a gritar o nome dos policiais, e aí atiraram nele”, relata. Da estatística oficial a bebê não consta. “Então são 494”, diz Débora.
Um filho das Mães
O grupo conquistou reconhecimento dentro e fora do Brasil. Débora e suas companheiras participam de conversas com outros movimentos sociais e instâncias do poder público e repetem “na bolinha do olho” de ministros e desembargadores suas histórias.
“A gente estava cega.” O filho de Helena, foi morto depois do assassinato do sargento Marcelo Fukuhara, exibido em rede de TV (Foto: Danilo Ramos/RBA)
Durante a onda recente de violência, similar à de 2006, elas foram os principais agentes a denunciar falhas na conduta do Estado.
Entre o que consideram vitórias, destacam a extinção das ocorrências policiais registradas como “resistência seguida de morte”, determinada pelo governo de São Paulo e há muito tempo recomendada por entidades da área jurídica, por integrantes do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
O governador Geraldo Alckmin, que já havia empregado sem constrangimento a frase “quem não reagiu está vivo” ao defender uma ação da Rota na qual nove “suspeitos” terminaram mortos em 11 de setembro passado, parece ter mudado de postura. Como os conflitos com facções criminosas se acirravam e a situação saía do controle, o comando da Secretaria da Segurança foi substituído e o Palácio dos Bandeirantes se aproximou do governo federal para discutir ações conjuntas. O fim do registro de resistência é um filho das Mães de Maio, agora nós queremos a desmilitarização”, afirma Débora. Além do engajamento político e jurídico, o grupo tem uma espécie de ativismo emocional, com que trata a dor e dá esperança a famílias que se envolvem.
Helena Teles Pina se tornou uma Mãe de Maio em setembro do ano passado. Seu filho José Rodrigo de Pina Júnior, o Pina, 25 anos, foi um dos mortos no 11 de setembro, horas depois do assassinato do sargento da PM Marcelo Fukuhara, o Japonês. “Depois que ele morreu saíram fazendo a limpa”, relembra Helena.
A morte do sargento foi mostrada pela televisão graças a gravações de câmeras de segurança. Mas nenhuma registrou a morte de Pina, segundo as informações dadas à família até agora. “A família é meio enxerida. Tentou investigar. As pessoas contam para nós o que aconteceu, mas não contam para as outras pessoas”, diz Helena. “A gente estava cega. As Mães já têm os caminhos”, define. Uma vizinha de Helena as colocou em contato. “Depois do enterro do meu filho, Débora veio aqui, me guiou por onde eu devia ir, o que devia e não devia fazer.”
“Eles não dizem que mataram, mas dizem que ele morreu porque tatuava o PCC”, relata Nair (Foto: Danilo Ramos)
O amparo também foi importante para Nair Torres. Seu filho Marildo Jofre Ferreira, o Nenê Tattoo, foi morto em dezembro de 2006.
Mas só no final de 2011 ela se aproximou das Mães. Nené tinha como clientes vários artistas, entre eles rappers. A família acredita que policiais queriam achacá-lo e o acusaram de ser tatuador do PCC. No dia seguinte à sua morte, um comandante disse na televisão que o rapaz havia trocado tiros com policiais. Dois dias depois, mudaram a versão e apresentaram drogas como sendo dele.
“Eles não dizem que mataram, mas dizem que ele morreu porque tatuava o PCC”, relata Nair, em sua casa em Santos, rodeada pelos dois filhos de Nenê e pelo pai dele, o também tatuador Marildo Ferreira. “As últimas palavras do meu filho, segundo me contaram, foram: ‘Vocês vão me matar? Eu sou pai de família’. E eles responderam que ‘pai de família também morre’. Perder filho é uma dor que não passa.” Nair começou a estudar Direito porque queria “buscar justiça” e considera Débora um elo. “Antes eu não confiava em ninguém.”
Segundo Vera, a principal reparação reivindicada pelas Mães é que o governo do Estado assuma. “Os crimes de maio foram um erro gravíssimo tanto do governo quanto do Judiciário”, diz. “O do Judiciário foi muito maior porque não se matam quase 600 pessoas e não se faz nada. A gente quer que as mães venham para o movimento sem os filhos morrerem”, convoca Vera. Atualmente,15 pessoas participam ativamente. “Mas as Mães são infinitas. As histórias se repetem. Tem mãe de maio, de abril, de dezembro”, afirma Débora. “Eu vi meu irmão desaparecer nos anos 80, na época do esquadrão da morte. Depois vi o pai do meu filho ser assassinado, depois vai meu filho. E não quero ver o meu neto. Então, essa é a luta do movimento.”
Por: Gisele Brito