Professora da USP, Erminia Maricato defende relação entre segregação socioespacial e reprodução do Aedes aegypti.
*Do Saúde Popular
Em meio à grave situação envolvendo a disseminação do Zika vírus, transmitido pelo Aedes aegypti, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) emitiu nota técnica recomendando a suspensão do uso de produtos químicos no combate ao mosquito.
O argumento do documento se baseia na preocupação e precaução em torno dos impactos de tais produtos sobre a saúde. Para a Abrasco, métodos físicos seriam mais seguros, mas, para além deles, ações estruturais de longo prazo deveriam ser pensadas, como a resolução das questões relacionadas à habitação e saneamento, com vistas ao que a entidade chama de “cidades sustentáveis”.
Para comentar a relação entre a estruturação das cidades e a emergência de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, o Saúde Popular conversou com Ermínia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Maricato foi secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo (1989-1992). No governo federal, foi da Secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003- 2005), cuja proposta de criação se deu sob sua coordenação.
Além de comentar os aspectos da relação entre questões urbanas e de saúde, Maricato também falou sobre o momento político e econômico do país, bem como das dificuldades de uma agenda progressiva para as cidades.
Confira a entrevista:
Há uma relação entre o processo de urbanização, com segregação social, e a ocorrência de epidemias transmitidas pelo aedes?
Não tenho a menor dúvida. O processo de urbanização tem tudo a ver com a reprodução do mosquito.
Os dados científicos apontam para isso: há uma ocorrência epidêmica muito maior nas áreas de menor renda. Por quê? Porque não tem drenagem satisfatória, nem saneamento. O que estamos incluindo nisso? Água, esgoto, coleta de lixo e drenagem. São quatro itens fundamentais que tem a ver com a saúde do ponto de vista ambiental. São questões que tem tudo a ver, principalmente a drenagem.
Estive na praia recentemente e vi isso. Uma obra barrando água no terreno vizinho, que está desocupado. Ou então essa coisa nas cidades de ter córregos que não são mais córregos, são depósitos de lixo misturados com água. Há uma quantidade muito grande de locais onde o mosquito pode se desenvolver. Não é só o pratinho da planta, o pneu, são coisas mais estruturais do saneamento e drenagem das cidades.
E o próprio acesso à rede de água potável, como influencia?
Depende de cada região. Você tem motivos diferentes para a reprodução. Há estudos que tenho lido, da Fundação Oswaldo Cruz, que tem apontado para isso. Há regiões do país que a principal causa da reprodução do mosquito é a estocagem de água.
Na sua opinião, por que o combate a disseminação de doenças tem enfrentado dificuldades?
Tudo que você vai analisar no Brasil, você percebe que a questão da desigualdade é um dos itens primeiros para constatar as causas dos problemas. Apesar de nós fazermos essa crítica maior das debilidades do saneamento ambiental e, do ponto de vista mais geral, da desigualdade, que é estrutural. Não podemos esquecer que há medidas que são gerais.
Existe uma questão que é: tem que mobilizar o país de fato para enfrentar isso. E mobilizar o país em um hora em que a mídia está tentando desacreditar os governos, principalmente o federal, é muito difícil. “Eu vou cuidar da minha poça, sendo que não tão fazendo nada, cortando recurso do SUS?”.
Nós temos que exigir uma condição melhor para áreas de mais baixa renda. Você pega os municípios periféricos, cidades dormitório, claro que a ocorrência é maior, mas é preciso que cada um assuma um papel ativo, de sujeito. Para isso, porém, é preciso haver uma esperança de que há um coletivo que você vai mobilizar e de que os governos, que têm uma responsabilidade maior, vão fazer a sua parte.
Nesse momento, está acontecendo o contrário. Todo mundo está largando. “É o meu” antes de mais nada. Esse é o pior cenário para se fazer um campanha para combater o mosquito.
Você citou o momento político. Ele interfere nesse caso?
Não há dúvida. O processo da crise política também tem a ver. Há um dificuldade de mobilizar cada cidadão para ser agente. Para falar com o vizinho, para olhar o buraco na frente de casa, ver o terreno baldio do lado e chamar a prefeitura. Enfim, é necessário haver essa ação.
Nesse momento, há um clima – estou falando mais das condições subjetivas – que são muito ruins.
Não conheço o ministro (Marcelo Castro, do Ministério da Saúde). Eu acho uma pena que tenha que se colocar ministro por aliança e não por competência, mas se ele fala “estamos perdendo a guerra”, todo mundo cai de pau. Você pensa: “se o minstro não é nada, quem sou para combater aqui em volta, brigando com vizinho?”. Isso é uma pena, a gente perde a chance de ter o país todo, a população toda ativa, para enfrentar a questão. É gravíssimo.
Não tem nenhum problema que não se resolva com população informada, organizada e agente do processo.
E a crise econômica?
Essa crise tem tudo a ver. Basta ver o que o governo paulista faz com os recursos de educação e saúde. Tem a ver com investimento, com o engajamento da população e com a desmoralização geral do país – a síndrome de vira-lata. É engraçado isso, porque no começo do governo Lula esse sentimento de que somos inviáveis como país estava se enfraquecendo, mas agora, sem dúvida, essa história está de volta.
Agora, por exemplo, estão cortando as equipes que fazem o trabalho de prevenção. Isso é fundamental. Ter pessoal no território, pessoal do setor público, fazendo acompanhamento, fiscalização, sendo pedagógico, convencendo.
Mas preciso dizer algo no qual sempre insisto: a crise econômica foi em boa parte fabricada. Outro dia vi o Gianotti dizer que está aterrorizado com a situação do Brasil. Ele deveria estar aterrorizado mesmo com a Síria, ou mesmo com os Estados Unidos, que não é brincadeira, embora a imprensa brasileira não fale.
Quando se discute tais medidas relacionadas à reforma urbana, é necessário perguntar: quais as condições técnicas para o Brasil criar cidades mais sustentáveis e justas?
Temos know how. Eu estive no início do Ministério das Cidades, durante a transição Fernando Henrique – Lula, justamente na criação do ministério. Nesse início, estava muito claro que, durante o governo FHC – até mesmo antes, desde a década perdida, depois passando pelos governos neoliberais – os investimentos pararam na área de habitação, saneamento e transportes. Eu já escrevi isso em vários livros, há mil tabelas demonstrando isso.
No início do governo Lula, na verdade, recuperou o investimento em saneamento. Isso é evidente. Nós fizemos um acordo, pasme, com o FMI (Fundo Monetário Internacional) para investir três bilhões na área de saneamento. Retomou, mas a continuidade foi fraca. Também, dando o Ministério [das Cidades] para quem deu… Depois teve as consequências.
Mas a ideia do saneamento naquele período era absolutamente inovadora. Eram investimentos naqueles quatro itens: água, esgoto, drenagem e coleta. Você vai na periferia e vê córrego represado por lixo.
Já fui em vários países do mundo que reconheceram coisas que a gente fez. Urbanização de favelas a gente virou mestre. O Brasil tem um know how respeitado no mundo inteiro. O que é urbanização de favelas? É chegar nessas comunidades pobres e dar condições urbanísticas, de saneamento e de meio ambiente saudável. Teve um período que a gente fez projetos impressionantes e bons.
Olhar para cidade esquecida foi o que fizemos na gestão Erundina, em outras prefeituras.
E por que essa experiência foi interrompida?
As cidades saíram da agenda, em uma certa hora. Depois que o ministério saiu das mãos do PT, e o próprio PT ignorou a questão urbana. Nos primeiros dez, 15 anos do PT, nós fizemos programas inovadores, como o orçamento participativo, que hoje o Banco Mundial dissemina. Os corredores de ônibus começaram em Curitiba, mas foram disseminados nas prefeituras democráticos-populares do PT, PCdoB e PDT. Brizola fez coisas muito importantes no Rio de Janeiro.
Não é consciente a opção de ignorar as cidades. Eu tenho um aluno que faz doutorado sobre urbanização de favelas. O que aconteceu com o nosso programa? Quando ele começou a ser controlado pelas grandes empreiteiras, perdeu toda a virtude de trabalhar com o planejamento da cidade como um todo.
Nós lutamos muito para que a urbanização de favelas fosse mercado para a indústria da construção, porque elas não queriam entrar nas favelas, porque é muito mais difícil fazer obra.
Quando isso virou item do orçamento, no final do governo Lula, início do mandato Dilma, virou um espetáculo. “Tem que ter bondinho, em áreas de grande visibilidade”. Perdeu toda virtude que era trazer o planejamento urbano e, dentro deste planejamento, ter o resgate de áreas degradas, sem infraestrutura – saneamento, drenagem, pavimentação, calçadas, coleta de lixo regular, etc.
O problema é que o capitalismo brasileiro engoliu a esquerda.