Texto: Márcio Amêndola
Miguel Angelo Laporta Nicolelis é um médico e cientista brasileiro, listado entre os mais influentes do mundo em sua área. Formado em medicina e doutorado pela USP, com pós-doutorado pela Universidade de Hannemann, foi professor titular do Departamento de Neurobiologia e Engenharia Biomédica, e Co-Diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, além de muitos outros títulos nas áreas da medicina e da ciência. Em 2010 divulgou seu Manifesto da Ciência Tropical, com a finalidade de ser um novo paradigma para o uso democrático da ciência como agente efetivo de transformação social e econômica do Brasil.
A apresentação do entrevistado foi realizada por Sara Sulamita, e o jornalista Márcio Amêndola conduziu o debate com este que é um dos maiores críticos das atuais políticas de saúde e de desenvolvimento científico do país, a partir do atual governo.
Miguel Nicolelis acredita que “a democracia liberal chegou ao seu limite”, com o crescimento do fascismo nos EUA e Europa em 2018, e a ascensão do grupo eleito para o atual governo brasileiro.
Nicolelis diz que Bolsonaro recebeu uma “carta branca para realizar todo o estrago que acabou realizando, e ainda não terminou”, alerta. “Desde final de fevereiro do ano passado, quando a pandemia começou, o Brasil é o único país do mundo que enfrenta a pandemia e o pandemônio político simultaneamente, e esse pandemônio também contribuiu muito para a tragédia brasileira, estamos nos aproximando de 600 mil óbitos, é o evento mais trágico da nossa história”.
Disputa existencial
“Eu acredito que o Brasil está numa encruzilhada, numa bifurcação histórica, é quase que uma disputa existencial para o país; o que o país vai ser nas próximas décadas está sendo decidido neste momento. A gente só precisa olhar para as queimadas na Amazônia, a ameaça de um apagão elétrico agora em novembro, as ameaças constantes de uma tentativa de golpe militar, os sobressaltos contínuos, os escândalos da vacina, as fakenews disseminadas pelo governo, que é uma coisa impressionante de se ver. Todo esse quadro de pandemônio político contribuiu para esse grande número de mortes no Brasil”. Lamenta.
“A sociedade brasileira tem abrir os olhos porque o país está sendo dizimado em múltiplas dimensões, a dimensão ambiental, a dimensão política, econômica, educacional, científica, social; não existe uma única área importante da condição humana no momento atual onde o Brasil não esteja indo ladeira abaixo”, afirma.
Pandemia não acabou
Nicolelis diz que o relaxamento dos cuidados nos EUA fez subir os óbitos novamente, além de uma enorme resistência à vacinação, após o sucesso inicial, e no Brasil a pandemia está longe de acabar. “Até o começo de agosto alcançamos 1,2 milhão de óbitos no nosso país por todas as causas, e esse número equivale ao total de óbitos do ano inteiro de 2019, antes da pandemia, tudo isso em menos de 8 meses, fazendo com que 2021 já seja o ano mais letal de toda a história da República brasileira”.
“Eu não acredito que a pandemia acabou, nós ainda estamos à mercê da dinâmica da variante Delta, que aparentemente conseguiu sobrepujar a variante Gama no Brasil, que é autóctone, veio da Amazônia”. Para o neurocientista, a variante Delta aparentemente dominou os casos de Covid no Brasil, “e onde ela dominou, causou um estrago assustador”, em muitos países, até em Israel que tinha sido pioneira na vacinação de toda a sua população, onde voltaram as restrições sanitárias.
Vergonha Internacional
Para Miguel Nicolelis, no início da pandemia, por ter um grande sistema público de saúde e uma tradição muito grande de campanhas nacionais de vacinação, a perspectiva de cientistas internacionais era a de que o Brasil seria um dos melhores países do mundo em conseguir coibir o espalhamento da pandemia, e esses cientistas, alguns amigos do brasileiro, “ficaram absolutamente chocados com o fato de que foi o oposto, o Brasil foi um dos piores do mundo, fracassou dramaticamente, na visão dos cientistas da comunidade científica internacional, foi um desastre completo” na gestão da pandemia.
Nicolelis diz que o Brasil foi o único grande país do mundo a não constituir um “Comitê Nacional Científico”, unificado para combater a Covid-19, “faltou preparo, comprar vacinas no momento correto, alertar a população dos riscos, criar mecanismos de lockdown nacional e regionais”.
“Os grandes jornais do mundo caracterizaram o Brasil e o presidente como inimigo público número um da pandemia no mundo, pelo desleixo, chegamos a ter 100 mil casos diários, e eu acredito que a subnotificação brasileira é muito grande, inclusive de óbitos, entre 30 a 40%”.
“Então a imagem brasileira que era de esperança do Brasil se sair bem e contribuir para o esforço mundial foi totalmente destruída, foi uma tragédia humana”.
Não investir em Ciência e Tecnologia é “suicídio”
Segundo o neurocientista, “há estimativas de que, de 40% a dois terços dos recursos para ciências no Brasil desapareceram, e com eles as bolsas, que são vitais para jovens cientistas sobreviverem no início da carreira; todos nós que fizemos carreiras científicas fomos bolsistas, e isso ocorre nu mundo inteiro, e 99% das bolsas no mundo são conferidas pelo governo federal de cada país, é assim nos EUA, é assim na Europa e era assim no Brasil”.
“Nós temos uma perda de talento humano, muita gente está imigrando, está deixando o Brasil para ir trabalhar em outros centros de pesquisa, onde pessoas de talento são recrutadas o tempo inteiro”. Para ele, o corte de verbas “é fatal, é um tiro no coração da ciência brasileira”, e quem faz isso “comete suicídio político e econômico, porque no mundo atual esses investimentos são estratégicos, eles não são devaneios ou luxos de um país”.
“É só ver o que está acontecendo nos países asiáticos; a China, por exemplo, ultrapassou os EUA no investimento do seu PIB científico; pela primeira vez no mundo desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) existe um país com mais de 30% do PIB mundial de ciência, e o nome não é Estados Unidos, o nome é China”.
“A soberania do Brasil foi atacada em 2016 e ela continua sendo atacada, esse é o projeto central, na minha opinião, é impedir que o Brasil atinja um grau de soberania, um grau de influência geopolítica, como ele vinha conseguindo ter”, constata.
“Limite da destruição”
Quanto à degradação ambiental promovida pelo atual governo, Nicolelis acredita que “estamos chegando no limite da destruição; é como na floresta Amazônica, são quatro milhões de quilômetros quadrados, mas não precisa destruir tudo para ela cruzar o limite de não recuperação; se você cruzar o limite que é muito menor do que a dimensão inteira da floresta, que é de 30% dela ou menos, você não tem como retroceder no processo. A mesma coisa está acontecendo no Pantanal”. Segundo ele, “aparentemente 70% do Pantanal já esteve em chamas no último ano, e para que isso, para limpar a vegetação nativa e criar gado, ou plantar soja? Não faz o menor sentido de um projeto a longo prazo de país. Precisa avisar lá pro pessoal da Faria Lima, do Paulo Gudes, que os netos deles também moram aqui, os filhos deles também, e quando faltar água, não tiver o que plantar, porque não tem chuva, eles também vão padecer dos mesmos problemas, como os cidadãos mais humildes do Brasil”.
Esperança
“Sem dúvida nenhuma o Brasil merece não só um governo melhor, mas um país melhor; o Brasil tem um potencial humano e uma força intrínseca, seja por suas características naturais, seja pela miscigenação do povo que cria essa força de resistência humana, é quase que uma parede humana de resistência ao obscurantismo, que eu acredito piamente, eu ainda acredito”.
Para ele, “nós precisamos reconstruir no Brasil; nós temos que novamente entender que só se constrói um Brasil quando toda uma nação se une com um propósito inclusivo, democrático, que beneficie a vasta maioria da sua população e não apenas uma minoria, e a pandemia mostrou isso claramente”.
Veja a íntegra da Entrevista com Miguel Nicolelis no Canal Amigos ENFF, em:
https://www.youtube.com/watch?v=FVoWVFfNJFM