A fé e a vibração de Iara pelas pessoas, seus sonhos e sua luta eram intensas. E sua sobrinha Mariana Pamplona reuniu num documentário impecável novos elementos a desautorizar a versão de suicídio
A bancária Nilda Cunha tinha 17 anos, era estudante secundarista em Salvador e dividia com o namorado Jaileno Sampaio um apartamento na praia da Pituba. Militavam no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Por orientação do comando, hospedavam uma companheira de São Paulo, a psicóloga Iara Iavelberg. Naquele 20 de agosto de 1971, os três estavam entre os que cairiam perante a Operação Pajuçara.
A ofensiva da repressão tinha como alvo o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, comandante daquele agrupamento guerrilheiro e companheiro de Iara. O efetivo da operação contava com mais de 200 homens das Forças Armadas, policiais federais, do Dops e da PM da Bahia. Segundo escreveu o jornalista Elio Gaspari, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que saiu de São Paulo para acompanhar a operação, passou a mão em seu rosto e disse: “Vou acabar com essa sua beleza”.
Nilda teve os olhos desvendados apenas quando foi levada para diante do corpo de Iara, já baleada e morta. Nas dependências da Base Aérea de Salvador, passou por sessões intensas de tortura. Solta semanas depois, debilitada, cega e enlouquecida, morreu em novembro daquele ano, com seu laudo de óbito atestando “edema cerebral a esclarecer”.
Dona Esmeraldina, mãe de Nilda, passou o resto de seus dias bradando aos quatro cantos que a filha fora violentada, torturada e envenenada. Em outubro do ano seguinte, foi encontrada morta com um fio enrolado no pescoço. “Suicidara-se”. A versão policial oficial lembra a da morte do jornalista Vladimir Herzog, três anos adiante.
Iara também teve anotado em seu óbito o termo suicídio. Teria atirado contra o próprio peito, segundo o laudo do legista Charles Pittex. A morte só foi divulgada um mês depois, quando a operação eliminou Lamarca no interior da Bahia.
A família foi proibida de abrir o caixão lacrado em que lhe entregaram o corpo. Por ordem da tradição judaica, foi segregada na ala dos suicidas do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo. Daquele dia em diante, parte da vida dos pais, irmãos e amigos seria dedicada a encontrar provas de que na vida apaixonada, vibrante e dedicada ao triunfo de Iara Iavelberg não havia espaço para acreditar que atirasse contra si mesma, aos 27 anos.
Reconstituição
O documentário Em Busca de Iara, que estreou em 27 de março, na passagem dos 50 anos do golpe, faz parte dessa missão. O filme é dirigido por Flavio Frederico, com produção e roteiro de sua mulher, Mariana Pamplona. A mãe de Mariana, Rosa Iavelberg, estava grávida de três meses quando sua irmã Iara morreu. Por precaução, não deu à filha o sobrenome.
Mariana tinha 21 anos quando, em 2003, a família conseguiu na Justiça a exumação dos restos mortais da tia junto ao contrariado Cemitério Israelita. O ato, registrado em vídeo, foi embrião do documentário. A ideia passou a virar desejo depois que um novo e minucioso laudo assinado pelo legista Daniel Munhoz derrubava possibilidades de que Iara tivesse disparado o tiro que a matou. E tornou-se projeto após 2006, quando seus restos mortais puderam ser sepultados junto aos dos familiares, momento também transformado em ato político pelo direito à memória e à verdade e igualmente registrado pelas câmeras de Flavio e Mariana.
O diretor já havia filmado ficção (Boca, 2010) e documentários. Caparaó (2006), sobre a primeira tentativa de resistência armada ao golpe, premiado no É Tudo Verdade de 2006, também tive parceria com Mariana. Ele já conhecia a importância mítica de Iara. “Mas não sabia ainda que nascia ali um filme – ‘O’ filme – sobre ela. As ficções eu escolho, mas o documentário me escolhe. Não era só Iara, era a história do Brasil, da Mariana, da família dela”, diz.
Depois de tomar aquelas primeiras imagens, planejar e colher pessoalmente os depoimentos para o filme – ao longo de quase oito anos –, Mariana tornou-se ela própria “personagem” e fio condutor. “Não estava planejado, mas o filme foi feito assim, e acabei sendo convencida pelo diretor de que esse formato foi coerente com a lógica da construção de um documentário”, explica. O fascínio pela história da tia vinha desde a infância, sobretudo da convivência intensa com a avó Eva Iavelberg. Mariana era codinome da ativista em sua clandestinidade. Aos 15 anos, a sobrinha leu na íntegra os diários de Lamarca, em que o ex-capitão revelava a grande influência intelectual de Iara sobre suas decisões e uma paixão extrema e incondicional. Os textos publicados num jornal foram mostrados pela mãe.
A arte-educadora Rosa não era ativista como os irmãos Samuel, Raul e Iara. Apenas ajudava nos dias de clandestinidade em encontros para levar comida, roupas e afeto. Nos anos 1970, mantinha uma instituição privada de ensino, Criarte, com proposta pedagógica humanista, que viria a se chamar Escola da Vila. Seus depoimentos no filme, assim como dos tios Samuel, Raul e Evelise, situam a narradora num ambiente familiar em que é descrita a personalidade, o caráter e a energia de Iara Iavelberg, sua beleza e seus cuidados com a aparência, feminilidade e a inteligência aguçada.
As entrevistas testemunham uma militante influente, que não era simples “amante” de Lamarca, como desqualificavam seus perseguidores. Ela apresentava ao capitão base teórica do marxismo e do socialismo. Tinha ascendência intelectual e política sobre suas decisões. E os relatos seguem desenvolvendo sua dedicação ao movimento, dos treinamentos no Vale do Paraíba em 1969 à fuga para a Bahia em 1971.
O documentário é também cuidadoso com a ambientação histórica. Uma cena de apenas um minuto, por exemplo, traz uma propaganda das Olimpíadas do Exército em meio a imagens de programas musicais festivos da Rede Globo e um texto ufanista que mais imbeciliza do que promove a “juventude”.
Mas o trecho mais importante é a incursão em Salvador, a descrição de como e por que o grupo caiu sob a Operação Pajuçara e a reconstituição do cerco ao apartamento. Uma vizinha e a ex-proprietária do imóvel detalham as cenas em que o apartamento é tomado pelo gás lacrimogêneo e esvaziado com militantes presos. Contam como Iara grita “não atirem, eu me rendo”. Ela havia conseguido se esconder, mas acabou descoberta por um menino que voltou para abrir as janelas para saída do gás e a delatou.
Mariana e Flavio reconstituem o exame de balística feito após a exumação, que descarta a hipótese de Iara ter disparado contra si mesma. E o confrontam com o depoimento do médico Lamartine Lima, legista do Instituto Nina Rodrigues e integrante da Junta de Saúde da Base Naval, que mantém a tese do suicídio. Foi preciso ter sangue frio: “Tive vontade de dizer muitas coisas a ele, mas não podia pôr a perder a entrevista”. O menino que volta à cena e vê Iara também é localizado pelo casal. É José Arthur Bagatine, que fez por telefone relatos que ajudariam a desconstruir a versão, mas desistiu de gravar.
Para Mariana, as evidências tornam inconcebível que muitos tenham acolhido a versão do suicídio como verdadeira. “Mesmo porque, de toda versão dada pela ditadura isentando-se da autoria de crimes, é preciso desconfiar.” Estão aí para dar-lhe razão Rubens Paiva, Herzog, Stuart Angel, Virgílio Gomes da Silva e tantos outros casos que vêm sendo desvendados desde a produção do documento Brasil Nunca Mais, pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo nos anos 1980, até os recentes testemunhos recolhidos pelas comissões da verdade.
E a verdade precisa vir à tona, como dizia dona Eva, mãe de Iara, em cena gravada em 2003. “Para que todas as gerações futuras fiquem a par do que aconteceu naquela época. Você acha que uma mãe esquece quando perde uma filha. Isso vai me doer enquanto eu viver.” Eva Iavelbeg morreria ainda naquele ano. Iara, retirada da ala dos suicidas, repousa ao seu lado.
Por por Paulo Donizetti de Souza, RBA