**Por Allan Robert P. J.
Os dias 29, 30 e 31 de janeiro de cada ano são chamados “i giorni della merla ” (os dias da merla). A merla é a fêmea do merlo (melro, em italiano), um pássaro preto comum por esses ares.
Conta a lenda que quando os melros ainda eram brancos, sofriam muito com o rigor do inverno neste período. Os três últimos dias de janeiro costumam ser os mais frios do ano. Nesses dias a fêmea do melro passou a fazer o seu ninho nas chaminés, quando estas foram inventadas. Com a fuligem os melros e os seus filhotes ficaram pretos.
Uma chaminé pode ser um detalhe na arquitetura de uma casa. Mas, como a maioria dos detalhes em arquitetura, tem uma função específica. As chaminés nos centros das cidades na nossa região diminuíram com o tempo. Nas capitais de províncias e na maioria das cidades italianas é proibido a queima de madeira para o aquecimento das casas. Usa-se o aquecimento a gás ou outros combustíveis fornecidos pelo concessionário público. Lenha, só para as consideradas casas de campo e em algumas periferias. As atuais chaminés servem somente para dispersar o vapor e os gases do aquecedor de água.
Um amigo italiano lamentou-se que não conseguiu reconhecer a pequena cidade no Paraná, quando voltou lá após vinte anos. A cidade chamava-se Londrina. Inútil tentar explicar-lhe que temos muito pouco a preservar. Nem me atrevi a contar-lhe que a Rua Henrique Schaumman, em São Paulo (que ele conheceu num mês de trabalho, ano passado), era uma rua que ligava o nada a lugar nenhum, quando eu morava em São Paulo. E que a vi crescer e desenvolver-se comercialmente com a habitual pressa paulista. E que depois de muito conhaque, chope e fritas, a vi entrar em decadência (e quase a minha, também), até virar uma pequena, mas importante ligação entre bairros. Como tantas outras ruas que fizeram parte de algum período do meu humilde, mas divertido exercício de sobrevivência naquela cidade.
A realidade é que as cidades italianas não mudam, ou mudam pouco. Os centros históricos são protegidos pelas leis de conservação do patrimônio histórico e não podem ser modificados. As casas são reformadas por dentro, mas a fachada e até as telhas devem ser preservadas.
A cidade é usada como referência da história pessoal de cada um. As casas onde habitaram os avós, os pais e onde habitarão os filhos, são as mesmas e, provavelmente, sobreviverão à história de outras gerações que, espera-se, virão. Às vezes com trezentos, quinhentos anos de construção.
Observando bem, é possível reconhecer as diversas invasões e colonizações das cidades italianas. O estilo de cada prédio revela a época de construção e as eventuais misturas de estilo informam sobre os restauros efetuados, assim como as datas aproximadas e as utilidades de tais modificações.
Piacenza, a cidade onde moramos, era um acampamento romano, fundado em 31 de Maio de 218 a.C., usado como a primeira base militar para a expansão do Império Romano rumo ao norte, contra os longobardos. Construída às margens do Rio Po, era protegida por altos muros. Suas ruas foram detalhadamente planejadas para facilitar a movimentação de tropas em momentos de necessidade. Pena que tenham sido projetadas para a passagem de bigas e carroças. As ruas do centro são muito estreitas.
Foi, também, a cidade de onde partiu a primeira cruzada e o local onde se enterravam os corpos dos escravos romanos. Toda a sua história está impressa na sua arquitetura e toda a sua arquitetura reflete o resíduo cultural desses mais de dois mil anos.
A arquitetura de uma casa reflete, também, o modus vivendi dos seus habitantes. E aqui surge uma curiosidade: somente a partir de 2000, uma lei obriga aos proprietários de casas acima de determinada metragem, à construção de um segundo banheiro. Encontram-se pouquíssimas casas de um, dois ou três quartos com mais de um banheiro. Muitos tentaram convencer-me que o custo de construção de um banheiro é muito alto, ou que o aquecimento de muitos cômodos torna-se complicado no inverno, além de oneroso. Realmente não consigo entender como um povo que passa tanto tempo em torno da mesa, possa dar tão pouca importância ao banheiro.
Assim como o merlo que mudou de cor, (pássaro que no Brasil chama-se graúna ou pássaro-preto) vamos nos adaptando e aprendendo a não usar o banheiro da casa dos outros. Salvo emergências.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.