*Allan Robert P. J.
Saio para fumar e descubro que alguém roubou o mundo. Quando morava em Petrópolis, cidade de muita neblina, minha mãe costumava dizer que uma foxrmiguinha tinha roubado a nossa casa, no retorno dos passeios. Nós morávamos no bairro do Cremeri, próximo ao Quitandinha (onde havia uma enorme pista de gelo que eu tentava domar) e em dias de neblina não se enxergava o outro lado da rua. Adoro neblina. Pelo menos quando estou a pé. Caminhar na neblina me dá uma sensação de paz, de tranqüilidade.
Piacenza, em Janeiro, é a cidade da neblina. Não tem neve, mas tem muita neblina. Aliás, toda a Planície Padana tem muita neblina entre Novembro e Janeiro. Ir de carro de Piacenza a Milão (ou vice-versa) é uma aventura arriscada, no inverno. Prefiro ir de trem. Uma semana depois da sua chegada de Bari, no Sul da Itália, o então jovem Antônio ouviu do comandante: “Você já está aqui há uma semana e ainda não saiu do quartel, soldado. Hoje é sábado. Porque você não sai para se divertir um pouco?” Ao que o Antônio respondeu: “Com essa neblina, do outro lado da rua (se é que existe o outro lado da rua) já estarei perdido”.
O aeroporto de Cumbica foi construído em uma área de forte neblina. E todos já sabiam disso antes mesmo da escolha da área para o novo aeroporto. Não creio que quem decidiu pela sua construção naquela região o tenha feito pelo prazer de passear na neblina. Tão pouco creio que a constante neblina agrade aos pilotos e passageiros. O antigo aeroporto da cidade de São Paulo, o de Congonhas, é considerado um dos aeroportos mais perigosos do mundo, rodeado por prédios e localizado (hoje) no meio da cidade. O (já não tão) novo aeroporto foi projetado com a consciência de ser inoperante na maioria das manhãs. A vergonha só não é maior porque está quase sempre escondido pela neblina.
Piacenza não tem aeroporto, mas tem muita neblina. Sorte minha conhecer a cidade, ou seria impraticável passear em dias de neblina. Presença de neblina é sinônimo de ausência de vento. Mas não de ausência de frio. Tomo um café no bar, com suas mesas na rua, fechadas em uma estufa de vidro aquecida. Acendo o charuto e vou caminhar pelo centro. O imenso estacionamento nos fundos do hospital parece ser o estacionamento do paraíso. Só os primeiros carros são visíveis, assim como a silhueta das árvores nuas. As pessoas caminham lentas, mãos no bolso e o cachecol jogado para trás. A fumaça do meu charuto se mistura e se perde na neblina. O hálito quente das pessoas, também.
O músico de rua soa uma flauta doce enquanto mantém aquecido o filhote de cão, enroscado nas suas pernas e coberto com trapos cinzas. Do outro lado da rua, invisível, o vendedor de castanhas assadas se aquece com o calor do próprio fogareiro. Os camelôs africanos que vendem bolsas falsificadas, simplesmente desapareceram. Os carros passam devagar, como em uma marcha fúnebre. Só eu pareço gostar da neblina. Aos poucos, as imagens vão sumindo, outras surpresas aparecem lentamente. O ritmo da cidade parece preguiçoso. Tudo some.
Minha mãe e meus irmãos moram no Embu, outra cidade de neblina. Lembro de uma noite, quando, voltando do cursinho, deixei minha namorada recém habilitada dirigir para treinar. Na BR 116, na última curva antes da entrada da cidade, passamos por dezenas de troncos espalhados pelo asfalto. Habilmente minha futura esposa conseguiu manter o carro na estrada e desviar do caminhão que os deixara cair. Ela, então, parou no meio da estrada e começou um desabafo, esclarecendo não ter culpa e que aquilo era uma loucura. Argumentei que ela tinha razão, mas que seria melhor seguir em frente antes que o próximo carro nos alcançasse. Era meia-noite e tinha uma neblina terrível.
Ouço o calmo bater de asas dos pombos que procuram os vãos nos telhados dos prédios. Eles não se assustam com o ônibus que surge do nada, habituados com o barulho da cidade, que parece sumir no vapor do escapamento. Os poucos pombos no chão da Piazza Cavalli caminham entre os poucos pedestres, esperando, em vão, migalhas que ninguém lhes dará hoje.
Os pensamentos se perdem com a fumaça do charuto e o hálito quente. Eu sou aquele, com uma mão no bolso, passos lentos, tentando enxergar o invisível, ouvindo sons identificáveis, passeando pelo desconhecido com tranqüilidade. Uma formiga roubou o mundo, mas eu me sinto em paz. Não existe nada à minha frente, tudo é obra da construção dos meus passos, da direção que escolho seguir. Nem o outro lado da rua existe, se eu não quiser. Apenas vou caminhando, misturando meu hálito quente à fumaça do charuto e à espessa névoa ao meu redor, como um navio. Aos poucos, deixo minha silhueta desaparecer neblina adentro.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.