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Quase meio século depois, os 21 anos em que o Brasil viveu sob a égide militar ainda estão vivos na memória dos que lutaram contra o regime. O ex-preso político Alípio Freire, 66 anos, lembra com detalhes do tempo que passou no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Baiano radicado em São Paulo, ele foi ao Recife como um dos destaques da semana Marcas da Memória, no final de março.
A despeito da sua militância, que começou bem cedo no movimento secundarista, e dos interrogatórios que respondeu sob tortura, Alípio não admite ser visto como vítima ou herói da sua geração. Ele, que pegou em armas para, não apenas resgatar a democracia, mas, principalmente, com o objetivo de construir o socialismo no Brasil, não culpa os jovens pela apatia política de hoje. “Nós somos as possibilidades do nosso tempo”.
Integrante da Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB que apostava na luta armada como forma de combate, Alipio foi preso aos 23 anos, pela Operação Bandeirante (Oban), quando estava no primeiro ano da faculdade de jornalismo.
Com Dilma, na prisão
Depois de três meses de interrogatórios no Doi-Codi e no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) foi transferido para o Presídio Tiradentes, que abrigou presos políticos durante a Era Vargas e o regime militar. “Não posso reclamar de monotonia”, comenta, aos risos. Além de cozinhar e das atividades de limpeza, os presos faziam artesanato, muitos, inclusive, para vender e pagar os honorários de seus advogados. Alípio contava também com as visitas frequentes da mãe, hoje com 98 anos. No presídio, Alípio conheceu Rita Sipahi, sua esposa. Ela integrava o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), que mais tarde se transformou em PSTU. Companheira de cela de Dilma Roussef, Rita foi uma das 11 ex-presas políticas convidadas pela presidente para participar da cerimônia de sua posse, em janeiro. Após a prisão, Alípio retomou o jornalismo e continuou na militância, atuando inclusive na fundação do PT. Anistiado, ele recebe indenização do Ministério da Justiça desde 2005.
Contudo, para Alípio, o processo de redemocratização “ainda está incompleto”, já que a Lei da Anistia, sancionada pelo então presidente João Figueiredo, não atendeu aos anseios dos que lutavam pelo fim do regime. Essa “situação inconclusa da democracia brasileira” foi tema do debate que levou Alípio para o Recife, onde ele concedeu esta entrevista.
A MILITÂNCIA
“Naquela época não dava para não se envolver, o debate estava colocado. É importante destacar isso para que não se pense que minha geração foi melhor do que a geração dos jovens de hoje. Era um outro momento. Não admito ser visto como vítima ou herói. Não existe isso. Nós somos as possibilidades do nosso tempo. Outra lenda que tem que acabar é a de que só o movimento estudantil lutava pela resistência. Outros setores da sociedade estavam envolvidos”.
CODINOMES
“Eu usava o nome de Severino. Fiquei muito conhecido como Biu. Depois da prisão, me autodenominei Moraes. Esses foram os nomes mais usados, mas também usei outros para circunstâncias específicas”.
ALA VERMELHA
“Muitos dos meus amigos militavam com o PCdoB. Com a cisão do PCdoB e a criação da Ala Vermelha, fui recrutado para o movimento. Não houve um convite oficial, fui participando dos debates e quando vi estava envolvido com a causa. Comparo a um namoro. Eu estava namorando sem me dar conta. Só soube mesmo na hora de ir para o motel. Nosso projeto não era lutar para voltar ao que era antes do golpe (de 1964), queríamos tomar o poder para construir o socialismo no Brasil”.
LUTA ARMADA
“Com o encurralamento do governo, a luta armada era inevitável. Mas nós sabíamos de tudo, inclusive do que poderia nos acontecer. Tínhamos cálculos estimativos do tempo de sobrevida de um militante político. Mesmo assim, eu quis ir. Fiz e faria de novo”.
PRISÃO
“Fui preso no dia 31 de agosto de 1969, pela famosa Oban (Operação Bandeirante, montada em São Paulo), onde fui torturado por uma semana. Em seguida, fui enviado para o Doi-Codi e depois para o Dops, onde sofri novas torturas. Piloto um pau de arara que é uma beleza (risos). Esse período de interrogatório só acabou em novembro, quando fui transferido para o Presídio Tiradentes. Lá conheci a minha esposa, Rita Sipahi, que foi companheira de cela de Dilma Roussef. Nessa época, perdi muitos companheiros. Diziam que eles morreram em tiroteios, mas, na verdade, eles foram capturados e torturados até a morte”.
TORTURADORES
“No presídio, alguns (torturadores) diziam que tinham vencido a guerra, mas eu dizia que era só uma batalha. Eu gostaria que eles estivessem vivos hoje para perguntar quem, realmente, ganhou. Eu posso contar para os meus filhos e netos, com muito orgulho e muita honra, o que vivi, já eles se escondem como ratos”.
A FAMÍLIA
“A minha família foi de uma solidariedade ímpar. A minha mãe principalmente, que sempre me visitava. Todos os presos adoravam ela. Meu pai era mais emotivo, do tipo ‘mexicano’, então não ia muito. Na primeira visita, ele disse uma coisa que me marcou: ‘Você sabe que eu discordo do que você fez, mas como você foi coerente, vim te visitar.”
JULGAMENTO
“A aparência de justiça, de alguma forma, era mantida pela ditadura para que ela tivesse como se legitimar, inclusive internacionalmente. Em 1972 fui julgado em primeira instância e condenado a 10 anos de prisão. Por sorte, fui julgado pela antiga Lei da Segurança Nacional. Depois do rapto do embaixador (dos EUA, Charles Elbrick), a lei ficou mais severa. O segundo julgamento foi em 1974 e a pena baixou para seis anos. Como eu já tinha cumprido uma parte da pena e era réu primário, em outubro desde mesmo ano fui solto, mas passei 11 meses em liberdade condicional. No fim das contas, fiquei preso por cinco anos”.
LIBERDADE
“Quando saí do presídio, em 1974, mantive a militância política. Até porque, durante o tempo em que estive preso, não deixei de ter contato com o pessoal que estava aqui fora, articulando o movimento. Nesse momento, a gente tinha definido que não era mais correto continuar com a luta armada, embora considerássemos absolutamente legítima. Também dei continuidade à carreira de jornalista. Criei o ABCD Jornal, que chegou a ter tiragem de 200 mil exemplares, trabalhei na TV Bandeirantes e depois fui convidado para compor a nova equipe de Vladimir Herzog na TV Cultura, onde fiquei até o desaparecimento dele. Com a morte de Herzog, percebi que poderia ser o próximo, então não voltei mais lá”.
LEI DA ANISTIA
“Acho que a anistia está incompleta até hoje, porque a anistia pela qual todos os movimentos de resistência lutaram não foi feita. Temos uma anistia e um processo de transição para a democracia incompletos. Não houve a abertura dos documentos, os corpos não foram todos encontrados, os julgamentos dos torturados não aconteceram. Mas a Comissão da Verdade é um avanço nisso”.
INDENIZAÇÃO
“Em 1996 dei entrada no processo para pedir a minha indenização (como anistiado político), que só saiu em 2005. Hoje sou aposentado pela Lei da Anistia e considero justo o recebimento desse dinheiro. O Estado é responsável pela integridade física de todo e qualquer cidadão. Não cumprindo isso, tem que indenizá-los”.
COMISSÃO DA VERDADE
“Não somos revanchistas. Não estamos propondo para os militares o que foi feito com a gente, os sequestros, já que não havia ordem judicial, os cárceres clandestinos, os interrogatórios com tortura, os assassinatos, as ocultações de cadáveres. Não acredito que construiremos uma nova sociedade usando esses métodos, mas você não pode falar de democracia aceitando a impunidade. Queremos que eles (torturadores do regime militar) sejam julgados com todos os direitos que todo e qualquer cidadão tem. Não queremos vingança”.
O PT
“Fui um dos fundadores do PT e continuo filiado ao partido, mas não tenho participado das reuniões internas. Acho que dos partidos existentes, o PT continua sendo o melhor do País. Até hoje, só voto com o PT”.
O HOJE
“A grande tragédia é que nós sobrevivemos ao pau de arara, mas ele também sobreviveu. Eu, essencialmente, não mudei meu pensamento, continuo não acreditando em liberdade sem igualdade. Como diz a canção de Gonzaguinha, ‘começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama em meu peito ainda queima, saiba! Nada foi em vão’”.
(Gabriela Bezerra – Reproduzido de Fundação Maurício Grabois)