Allan Robert P.J.
Num dos departamentos da empresa onde trabalhava, havia (passado imperfeito) um chefe maluco. Seu comportamento viajava de um extremo a outro com um gesto, uma palavra. Apesar de tudo era uma pessoa divertida. Os mais experientes evitavam confrontá-lo nos momentos de combustão, ou, quando o faziam, era para mostrar que o culpado era ele, o chefe. Quando o chefe encontrava algo errado procurava o culpado e partia pra cima berrando por explicações. Como a primeira reação é aquela de se defender, o infeliz pagava um preço muito alto pelo deslize e deveria suportar a ira e as acusações do chefe por todo o dia. Porém, se o culpado abaixava a cabeça e reconhecia o erro, o chefe o abraçava, beijava e procurava consolá-lo, dizendo que todos erram e isso não era o fim do mundo. Não raro, passava o dia certificando-se que o funcionário tivesse um dia positivo, presenteando-lhe com balas, contando piadas, fazendo palhaçadas e até strip tease. Para ele (o chefe) o importante era encontrar o culpado. E quando o encontrava, a paz reinava.
Num episódio mais recente o gnomo do inverno fez girar mais veloz a máquina da neve e bloqueou toda a Itália por dois dias, com cenas de pessoas que saíam de casa pela janela do primeiro andar porque a porta havia sido coberta pela neve. O trecho da Autostrada A1 entre Bolonha e Piacenza foi interrompido e a Defesa Civil distribuiu cobertores, água e alimentos às pessoas presas nos veículos sob a neve. Os caminhões que limpam as estradas e jogam sal no asfalto trabalharam sem parar. Felizmente a situação não teve consequências mais graves. Óbvio e inútil informar que o gnomo que cuida de Piacenza não permitiu que a neve nos atingisse, mas bastava sair de Piacenza para encontrar toda a neve do mundo.
Voltando ao episódio das estradas, uma vez passada a emergência, os órgãos públicos e a Defesa Civil iniciaram uma longa (creio que infindável) troca de acusações sobre os possíveis culpados…
Pesquisando no tempo até meados dos anos noventa, encontramos um ciclista que se tornaria uma lenda. Enfrentando muitas dificuldades pessoais e uma respeitável coleção de quedas, como nos contos de fada, Marco Pantani tornou-se o ídolo em um esporte muito disputado na Europa. Numa das muitas corridas que fez, foi atropelado por um carro de uma equipe de jornalistas que não deveria estar dentro do circuito fechado para o evento. Do hospital, informou que iria contrariar a solicitação dos organizadores e que iria, sim, processar os jornalistas que causaram o acidente. E o fez.
Precisou ser operado de ambas as pernas, fez uma longa recuperação e voltou triunfalmente, vencendo o Giro d’Italia. Tempos depois, quando Pantani estava próximo de tornar-se bicampeão do evento, numa das últimas etapas, na localidade de Madona di Campiglio, uma blitz policial invadiu o hotel em que ele estava hospedado e o levou preso, sob acusação de uso de substâncias dopantes. Numa situação que até hoje não foi esclarecida, com parte da imprensa que o acusava enquanto outra sugeria a participação de uma máfia das casas de apostas (muito comuns por aqui – as casas de apostas e as máfias), o campeão protestou e jurou inocência. Era o ano de 1999 e Pantani disse: “Sempre soube levantar e me recuperar das quedas. Sei que desta vez não conseguirei me reerguer.” Como profecia ou por ser o único a ter conhecimento de todos os fatos, nunca mais se reergueu. Treinava, tentava e… nada! Nunca mais um outro título. Os jornais vendiam como água quando conseguiam uma entrevista ou tinham alguma atualização do “Caso Pantani”. Numa outra edição do Giro d’Italia, uma nova blitz encontrou uma seringa com resíduos de substância de uso proibido, em um quarto de hotel que a polícia suspeita mas não conseguiu provar que fosse ocupado pelo ex-campeão. Outro processo interminável na justiça. Outra montanha de jornais vendidos.
Pantani começou a evitar jornalistas, olhares diretos, lugares públicos e velhos amigos. Por mais de uma vez internou-se espontaneamente em clínicas de desintoxicação. Soube-se, depois, que o pai havia sequestrado todos os seus bens e o dinheiro que ganhou como profissional, para evitar que o filho torrasse tudo. Vivia de mesada. No início de 2003 interrompeu os treinamentos para uma viagem de repouso a Cuba, onde encontrou-se com Maradona. Dias depois, o consulado italiano na Ilha chamou os familiares: “venham buscá-lo!”
Os pais, abatidos pelo desgaste de ver o filho que não conseguia se reerguer (desde Madona de Campiglio) pedem uma trégua e tiram uma semana de férias, num cruzeiro nas ilhas gregas – paga com dinheiro próprio, e não aquele do filho famoso. Pantani aproveita a folga e some. Deixa em Milão o carro e o celular. Não quer ser encontrado. Hospeda-se em um apart hotel em Rimini, cidade de praia. Passa o tempo trancado e com poucas saídas. Tem os olhos estáticos e o rosto inexpressivo. É cordial, breve mas simpático com o porteiro e as poucas pessoas que cumprimenta. No dia 14 de Fevereiro de 2004 sofre a última queda de sua breve vida de trinta e quatro anos: é encontrado morto no chão do pequeno apartamento. Os exames divulgados informaram que morreu por overdose de medicamentos e cocaína ou crac. A polícia iniciou uma desesperada busca pelo traficante que teria vendido a Pantani a última dose. Como sempre ocorre nesses casos, numa coletiva de imprensa sobre a investigação, oficiais da polícia pediram a ajuda, ainda que anônima, de qualquer um que pudesse apontar quem vendeu a droga ao campeão. Precisavam desesperadamente encontrar o culpado…
Quando fiz um curso de piloto privado, ministrado por integrantes da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes da Base Aérea do Salvador, aprendi que após um acidente, o que eles mais temiam era descobrir uma falha humana como causa. Mais que preservar a imagem dos pilotos, temiam perder a oportunidade de prevenir novos acidentes, numa prática internacional de troca de informações, com novas normas que surgem após cada acidente aéreo. O que conta é o que se pode aprender com os erros.
Como num conto policial, o italiano tem necessidade de encontrar um culpado para todos os males. Acho que é por isso que a instituição dos mordomos não vingou neste país. O traficante de Pantani foi preso como único culpado pela morte do ciclista.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.