Allan Robert P. J.
Eu tinha doze, treze anos e ficava maravilhado cada vez que via meu pai destrinchar um frango assado. Ele segurava a tesoura (aquela apropriada) com tal destreza que parecia a coisa mais fácil do mundo. Nas minhas poucas e frustradas tentativas solitárias, o máximo que conseguia era travar a tesoura com um pedaço de osso e espalhar pedaços de frango por toda a mesa, quando a mola da tesoura a liberava. Meu pai provavelmente se divertia ao notar meu interesse por algo banal, assim como talvez se sentisse orgulhoso em poder aproveitar esses pequenos momentos para contribuir à minha formação. Depois de muitos frangos assados, perguntei-lhe como é que se fazia e ele respondeu:
– Segure a tesoura com a mão direita bem firme e espete o garfo no peito do frango de modo a tê-lo imóvel no prato. Faz uma cara de quem sabe o que está fazendo e vai metendo a tesoura…
Na Itália a indústria do vestuário nunca está em crise. E não me refiro somente aquela da moda, mas todo e qualquer tipo de vestuário. A quantidade impressionante de ciclistas com roupas apropriadas para ciclistas pelas ruas reforça a imagem esportiva profissional européia. A grande maioria, na realidade, usa aqueles trajes não mais de uma hora por semana, mas sob nenhuma condição aceita sair para uma voltinha de bicicleta com roupas menos adequadas. A bicicleta, é óbvio, também é profissional.
Como os salários têm pouca variação e cobrem as necessidades básicas e algo mais, até a senhora da limpeza ou o operário têm condições de vestir-se bem. E o fazem. Durante o dia, no horário de trabalho, vestem-se obedecendo as regras do próprio ambiente e das normas de segurança: a senhora da limpeza usará um guarda-pó e sapatos que não escorregam mesmo sobre água ou óleo, assim como os do operário, que além de não escorregarem oferecem proteção contra quedas de objetos. Nenhum restaurante se lamenta ou proíbe a entrada de pessoas com roupas de operário ou sujas do trabalho ao meio-dia. À noite, porém, será impossível distingui-los da mulher do advogado ou o patrão do operário.
Nos cursos de vôlei e basquete das nossas filhas, a primeira ação dos organizadores é entregar as roupas que deverão ser usadas nos treinamentos. Ninguém aparece para treinar com roupas diferentes dos uniformes. Mas na escola já não precisaram usar o guarda-pó branco de sempre, pois a obrigatoriedade havia caído.
No primeiro ano de Itália, passei meses sem conseguir encontrar meias pretas, que, com a chegada do inverno, torna-se a cor obrigatória. Pois bem, o ladrão mudou de gosto. Alguém roubou todas as meias bege e marron-claro. Há mais de uma ano que não as encontro. Mas pude notar uma coisa interessante: com a chegada da primavera, quando aparecem as tulipas, as pessoas se dão conta de que é hora de vestir-se com um pouco mais de cor e abandonam o preto nos armários. São elas – as tulipas – as responsáveis pela mudança. São causa, e não efeito.
Como a República Italiana foi unificada, e não libertada, as tradições têm imenso peso nas coisas do dia a dia. A farda dos policiais municipais são trajes modernos como de qualquer polícia que conhecemos. Já a farda dos Carabinieri são peças de museu. E não se toca. Assim como os prefeitos estarão sempre com uma faixa transversal com as cores da bandeira italiana em toda e qualquer aparição pública. As togas dos juízes italianos causam risos, mas desaconselho. Os juízes, mesmo aqui, são muito suscetíveis. As professoras usam roupas de professoras. Os médicos podem ser reconhecidos pela rua. Os estrangeiros, idem.
Giovanni, um amigo, faz parte de uma confraria chamada Santo Cibus. Nas reuniões do seu reservado grupo todos devem endossar o traje tradicional, formado por um chapéu alto, em estilo medieval e uma bata aberta dos lados que se coloca por cima das roupas. O brasão é composto por um braço de armadura que segura um garfo, bordado sobre o imenso babador que o chefe supremo coloca, no início da reunião, em cada membro do grupo. As reuniões acontecem nos restaurantes mais distantes, para evitar testemunhas das barbáries praticadas pelos integrantes contra o santo cibo (santa comida, em italiano).
É possível encontrar a roupa adequada para toda e qualquer atividade. Não usá-la será visto como falta de profissionalismo ou seriedade. Garotos de cinco, seis anos com roupa de rugbi e a inconfundível bola oval, caminham em direção ao campo segurando as mãos de pais orgulhosos. O gerente do banco que veste o avental branco antes de começar a pintar a sala da própria casa. O motorista do táxi de terno e gravata. O pintor de quadros que vai às ruas em busca de inspiração com o avental multicolorido e o chapéu engraçado que se vê nos filmes.
Todos parecem ter aprendido a lição do meu pai: não importa o que você faça e nem se o faz bem. O importante é demonstrar segurança.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.