Allan Robert P. J.
Ele não era exatamente cego, era louco. Não falava com ninguém, preferia falar sozinho. Às vezes trombava com as pessoas e sequer pedia desculpas: não as via. Assustava-se quando acontecia um esbarrão mais forte. Fazia cara de apavorado, com os olhos arregalados, como a procurar alguém que jamais encontrava. Xingava.
[Mas será que eu realmente estou ficando louco? Porque não vejo ninguém e os carros e ônibus continuam a passar vazios? Onde foi parar todo mundo?]
Tinha uma aparência mal cuidada, barbudo e roupas amarrotadas. Não chegava a ser maltrapilho, apenas parecia abandonado. Certa vez o vimos sentado no muro do Passeio Público. Passou o dia lá, falando sozinho. Ou com alguém que só existia na sua imaginação. “Estou ficando cego!” gritava, às vezes. Outras vezes fazia longos discursos, que ninguém parava para escutar. Tinha sempre um olhar vazio, solitário.
[Amigos, cadê vocês? Se puderem me ouvir e quiserem falar comigo, vou passar o dia aqui, sentado. Vejo os objetos, mas não vejo as pessoas. Não vejo vocês. Tudo é real, não me parece um sonho. Por favor, só quero falar com algum conhecido. Estou ficando cego…]
Ninguém se aproximava dele, sempre de mau humor e com a boca cheia de palavrões. Gritava e xingava. A caixa do supermercado tinha medo, muito medo. Ele chegava, perguntava se ela tinha visto mais alguém e, diante do silêncio dela, xingava e fazia suas compras, falando o tempo todo. Eram coisas simples, as que ele comprava. Frugais, espartanas. Diziam que era aposentado e que foi parando de falar com as pessoas aos poucos, depois da morte da mulher. Não tinha filhos ou parentes conhecidos.
Outro com quem ele falava era o funcionário do banco. Uma vez por mês ia retirar dinheiro e passava na frente da fila. O funcionário pedia que aguardasse a sua vez, ele respondia que se o banco estava vazio, não precisava esperar. O funcionário, acostumado, pedia paciência aos outros clientes e argumentava que seria mais rápido atendê-lo de uma vez.
[Moça, você viu mais alguém hoje? Porque você me olha sempre com cara de quem viu fantasma? E porque essas merdas de banco e supermercado ficam abertos o dia inteiro, se o único cliente na cidade sou eu? Você não fala nada? Puta que pariu! Acho que nós estamos mortos e não conseguimos achar o caminho pra sair daqui. Ou os outros é que morreram e nós ficamos sozinhos. Fala alguma coisa, merda! Não, eu não posso estar morto: ainda sinto frio, fome, dor. Mas um dia acabo com essa história!]
Ano passado tiveram que chamar a polícia. Às três da manhã estava parado em frente a um pequeno prédio, gritando o nome de um antigo morador. Ignorava os pedidos dos vizinhos que saíram às janelas. Explicavam que o fulano não morava mais ali, que havia mudado para a casa da montanha, depois da aposentadoria como encanador. Pediam que voltasse pra casa. Mas ele não ouvia ninguém e continuava a chamar: “Eu sei que você está aí. Nem precisa responder, mas, por favor, vá à minha casa consertar o sistema de aquecimento, antes que o inverno chegue e me mate de verdade”. Quando a polícia chegou, não o encontrou mais ali.
No dia seguinte foram entregar a intimação da queixa registrada pelos moradores. Como sempre, não respondeu. Três dias depois, com autorização judicial, abriram a porta do seu pequeno apartamento. Encontraram tudo arrumado e limpo. Os poucos móveis, lustrados. Sobre uma escrivaninha, maços de cartas velhas amarrados com barbante. Tudo cuidadosamente arrumado. Dele, nem sinal. Nunca mais foi visto nem tiveram notícias dele. Chegaram a iniciar uma investigação, mas ninguém soube dar nenhum indício. A ação da justiça foi interrompida, abandonada.
Talvez tenha, finalmente, encontrado o caminho que procurava. Ou nós é que ficamos cegos.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.