Diante de incansável rotina de perseguição, dependentes que vivem pela “Cracolândia”, no centro de São Paulo, já consideram como normal a truculência policial
São Paulo – Logo após outra intervenção policial nas imediações da área de consumo de crack na região da Luz, no centro de São Paulo, por volta das 11h da última sexta-feira (13), cinco viaturas da Força Tática dobraram, em alta velocidade, a esquina entre a Alameda Glete e a rua Barão de Piracicaba. Como se atendessem a alguma ocorrência específica e de peso, seguiam carros da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) acompanhadas até de helicópteros. O quarteirão era o escolhido do dia para a Operação Sufoco (ou Centro Legal), iniciada no dia 3 deste mês pela Polícia Militar e pela Guarda Civil Metropolitana. O público-alvo assistia à ação deitado nas calçadas e ensaiava alguma forma de se esquivar.
“Quero ver me tirar daqui”, dizia um dos dependentes de crack que se encaminhava à rua Helvétia, considerada um ponto forte no consumo da droga. Alguns procuravam a reportagem da Rede Brasil Atual para reclamar de eventuais agressões pela Polícia Militar naquela manhã. Uma mulher, bastante alterada, se protegia com uma camisa manchada de sangue. “Não tenho culpa de ser dependente”, balbuciou outra usuária que, apesar do sol do meio-dia, vestia blusa de frio.
Em contraste com o restante do cenário, um homem sentado numa calçada tinha sua barba feita, sem pressa, por um missionário franciscano, em frente ao galpão da “Cristolândia”, local de orientação religiosa, instalado na região. Lúcido, Evandro O., de 37 anos, reclamou das ações policiais. “Eles disseram que iam metralhar a gente (se não saíssemos da região). E vivemos agora com medo. Agora não, desde sempre. Nem piscamos mais”, contou. Evandro afirmou perambular pela região há mais de dez anos e relatou um dos episódios de “esconde-esconde” na operação. “Esses dias a gente estava na rua Guaianases, e logo a galera toda fugiu para a (avenida) Ipiranga. É assim, eles chegam e a gente corre.”
Apesar de estar próximo aos missionários e sentir mais segurança, Evandro revelou que o que mais quer é “se tratar”. “A Prefeitura até que dá opção, mas é para dar remédio. Tipo manicômio. Não quero isso, quero é me tratar, ficar de cara limpa”, disse.
O Complexo Prates, um galpão localizado no bairro do Bom Retiro, deve ser inaugurado ainda incompleto pela Prefeitura em fevereiro. O objetivo é abrigar os usuários neste local, com capacidade para 1,2 mil pessoas. Segundo recente levantamento da Polícia Civil, cerca de 2.000 pessoas moram na chamada cracolândia. As unidades de Assistência Médica Ambulatorial (AMA) com funcionamento 24 horas e de Centro de Atenção Psicossocial (Caps) ainda não têm data para inauguração.
Sobrevoando cada vez mais baixo, o helicóptero da PM chamava a atenção não só dos usuários do entorno – que às vezes arremessavam objetos ao céu -, como também dos transeuntes, moradores da região ou a caminho do trabalho, e de comerciantes. O proprietário de um pequeno hotel do bairro preferiu não se identificar. No entanto, quis compartilhar a sua experiência como espectador da operação. “A polícia está ferindo o direito de ir e vir dessas pessoas”, ressaltou.
Eu acho que eles (o governador do Estado, Geraldo Alckmin e o prefeito da cidade, Gilberto Kassab) deveriam ter esperado a Dilma chegar, e fazer a coisa mais certa, unir os poderes. Mas não, quiseram atropelar e deu no que deu”, referindo-se ao plano do governo federal, anunciado no ano passado, que prevê o enfrentamento ao crack com ênfase no tratamento especializado e direcionado, com a participação das esferas municipais, estaduais e federal, em ações conjuntas. Autoridades cogitam a hipótese de a operação policial ostensiva ter como motivo a vinda das medidas da presidenta Dilma Rousseff a São Paulo, previstas para a partir de março.
“Violência é o que mais se vê”
Na fila de atendimento da Cristolândia, a reportagem encontrou Félix dos Santos, de 34 anos, dependente químico. Ele estava à procura de internação. Começou cheirando esmalte, aos 7. “Eu estava na rua, e já aprontei muito. Já roubei, já matei, já trafiquei, fiz de tudo”, confessou. Ele ficou preso dois anos por tráfico de drogas (no período de 2004 a 2006), e desde então cumpre condicional. “Encontrei muitos amigos que estavam comigo no cárcere que falavam que não eram ‘noias’ (gíria utilizada para usuários de droga), e encontrei vários aí na cracolândia fumando crack”, disse Félix, que conta ter nascido no Grajaú, na zona sul de São Paulo.
Por experiência própria, Félix entende que quem se vicia em crack pretende “mostrar seu melhor ao mundo”, num caminho às avessas. “Chega a um determinado ponto que sua própria família não acredita em você”, lamentou. Entre idas e vindas, não se firmou em lugar algum. As estadias nos albergues – rejeitados por alguns moradores em situação de rua pela aversão às regras impostas nos locais – podem ser contadas nos dedos. “Nunca vivi muito em albergue, sempre estive mais é na rua. Quando eu via que estava muito fraco, sem força, eu corria para a casa da minha mãe. E depois voltava para a rua.”
Ele diz que pretende, por decisão própria, internar-se para curar o vício “Já aprontei demais. Tenho 34 anos de idade, e uso drogas. Posso apostar com vocês, que se voltarem daqui a um tempo, estarei totalmente recuperado”, disse, otimista.
Questionado sobre a operação policial, Félix afirma que as denúncias de agressão, que só tomaram agora proporções na mídia, acontecem desde sempre. “Desde 1990 que eu ‘colo’ aqui e vejo isso”, garantiu. “Ser agredido é consequência de quem vive nessa vida na rua. Os caras humilham, espancam. Era para a autoridade proteger a gente, colocar em um lugar melhor. Em vez disso, preferem que usemos mais drogas.”
Após a visibilidade alcançada pelo tema, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo instalou um posto móvel de atendimento aos usuários, na rua Barão de Piracicaba, para receber as denúncias direto da fonte. O Ministério Público apura os casos passados de violência e tem se reunido com o comando da PM para evitar novas denúncias.
Um outro mundo
A trajetória de David da Silva, 26 anos, expõe mais um drama familiar. Hoje frequentador da Igreja Batista, e responsável por dar banho nos usuários que chegam à Cristolândia nas situações mais deploráveis, o rapaz trocou um caminho promissor pelo crack. Segundo ele, seu padrasto o espancava quase todos os dias, dos 6 aos 14 anos de idade, e foi o estopim de sua fuga de casa, com a “roupa do corpo”.
Anos depois, ensinando capoeira na cidade de Limeira – a 148 km de São Paulo -, foi convidado para participar de lutas clandestinas por dinheiro. E foi aí que conheceu as drogas. “Comecei a cheirar cocaína e daí foi só ladeira abaixo. Aos 22 anos eu já tinha perdido tudo, do treinamento físico ao dinheiro”, lamentou.
Sem o apoio familiar, foi morar em uma cracolândia em Guarulhos, na Grande São Paulo. “Lá eu dormia em um terreno, debaixo de uma torre de energia. Foi aí que conheci o crack. Era boca rachada, sangrando. Já fiquei na rua, já comi lixo, e mendigava muito”, contou. David, que pesava 85 quilos, está com 55. Tido como desaparecido há mais de seis meses, a irmã de David resolveu procurá-lo e, por meio de conhecidos, fez contato. “Minha mãe me levou até um lugar para tratamento, e de lá me trouxe muito debilitado para a Cristolândia”, o que aconteceu em junho do ano passado.
Já recuperado e eloquente, ele espera se tornar missionário ainda neste ano e continuar trabalhando como voluntário. “Nós aqui evitamos falar do passado. Daquela porta para cá é outro mundo.”
(Por: Letícia Cruz, Rede Brasil Atual)