Havana – Em frente a uma das centenas de casas que cercam a Universidade de Havana, duas mesas de lata formam um balcão improvisado que separa Simone Cruz, 27 anos, de sua nova profissão. Formada em gastronomia, ela agora é vendedora de bijuterias e acessórios para cabelo. Simone deixou há apenas três meses o trabalho de assistente em um refeitório escolar. O convite para o novo emprego veio de sua vizinha, que é dona da casa e do estabelecimento, montado há oito meses: “Trabalho um pouco mais, mas ganho mais também. Eu tive medo, mas preferi arriscar e mudar”.
Em meia hora de caminhada pelas ruas de Havana, é possível encontrar dezenas de cafés pequenos restaurantes domésticos montados na frente das casas, com um ou dois empregados. O cardápio tem cachorro-quente, pão com queijo ou refeições em cajitas ou pratos de plástico que não custam mais de dez pesos cubanos (o equivalente a 60 centavos de reais).
Esses pequenos estabelecimentos agora serão parte importante da “atualização do modelo econômico cubano”, o mais importante processo político anunciado no país nos últimos anos, recebendo parte dos funcionários estatais que serão demitidos. É o que planeja o governo da ilha.
“É preciso apagar para sempre a noção de que Cuba é o único país do mundo onde se pode viver sem trabalhar.” Foi com essas palavras que o presidente Raúl Castro definiu um dos pilares das mudanças que foram discutidas e ratificadas no VI Congresso do Partido Comunista, realizado em abril de 2011.
Simone Cruz admite que foi um “longo e penoso processo” trocar a gastronomia – profissão para a qual estudou na universidade mais antiga do país – pela profissão de vendedora. Apesar dos riscos, contou que se sentiu motivada a apostar na mudança para juntar dinheiro. Sua meta é abrir um pequeno restaurante em sua própria casa. “Quero fazer e servir cajitas (uma espécie de marmita cubana), mas ainda preciso de capital”, afirmou.
Trabalho privado
Em meados de 2010, quando os ajustes foram mencionados pela primeira vez, ficou claro que a política trabalhista seria alterada logo na primeira fase, prevista para ser concluída em 2012. O objetivo é enxugar o excesso de funcionários da máquina estatal, aumentar a produtividade e, gradativamente, melhorar os salários em um país onde atualmente a taxa de desemprego é de 2%. Nas palavras de Raúl, “fazer com que todas as pessoas aptas se integrem ao trabalho”.
Poucos meses após o primeiro anúncio, o governo ratificava a decisão que mudaria a estrutura do emprego em Cuba: a demissão de 500 mil a um milhão de trabalhadores no setor estatal e a ampliação do trabalho privado. “Vamos flexibilizar as atividades por conta própria, ampliando as oportunidades”, afirma Carlos Mateo, vice-ministro do Trabalho e Previdência Social.
Essa possibilidade não é uma novidade. A modalidade foi introduzida nos anos 1990, durante o período especial, quando o país enfrentou a crise causada pela queda da União Soviética. Na época, foram concedidas as primeiras licenças para os trabalhadores por conta própria, os conta-propistas. Foi então que, rapidamente, apareceram nas ruas de Cuba os paladares, como foram chamados os pequenos restaurantes particulares, lanchonetes, cabeleireiros e táxis privados. Ao todo, naquele período, foram concedidas 306 mil autorizações. No fim da década, essas licenças deixaram de ser outorgadas.
Antes, a contratação de mão-de-obra só era permitida a 83 das 178 atividades que o setor privado desenvolve no país. Agora, as 178 são autorizadas. Desde outubro de 2010, 325.947 novas autorizações foram outorgadas. As expectativas do governo eram de atingir esse número somente no final de 2011. A área mais procurada (22% das solicitações) foi a de venda de elaboração de alimentos, seguida pela solicitação para mão-de-obra contratada em negócios particulares (17%), transporte de passageiros (6%) e aluguel de casas (3%), segundo dados governamentais.
Quase 70% dos cubanos que solicitaram licenças como autônomos estavam desvinculados do mercado de trabalho – já trabalhavam como conta-propistas na informalidade, sem ter licença concedida – e 30% correspondem a ex-empregados estatais ou aposentados.
Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular, comemora esse processo. Para ele, não é necessário que o Estado administre barbearias ou venda de raspadinhas de gelo e fruta, populares durante o verão cubano. “É inútil, custoso, vai contra o orçamento do Estado e favorece a corrupção. Você precisa criar quase um ministério para fazer o que uma pessoa sozinha é capaz de fazer”, ironizou.
Os conta-propistas também terão de conviver com uma novidade conhecida por poucos cubanos: pagar impostos sobre a renda e contribuir para a previdência social. Os valores anunciados variam entre 25% e 50% da renda líquida anual dos pequenos empresários. Estarão isentos aqueles que ganham menos de cinco mil pesos cubanos anuais. Foi fixado também um imposto de 10% para quem alugar a casa ou a garagem, piscina ou um quarto. Já a contribuição para a previdência deve ser de 25%, sendo que os conta-propistas é que deverão arcar com os custos dos empregados contratados.
Outra mudança está na política salarial, a começar pela diferença entre o maior e o menor salário do país, segundo Mateo. O valor mais alto é de 650 pesos, o que recebe um ministro, e o mais baixo é de 225 pesos cubanos, dos auxiliares de limpeza. “A diferença entre salários irá aumentar, para estimular a produtividade”, salientou.
Novos parâmetros
A taxa de desemprego em Cuba (2%) é um número considerado baixo para os padrões latino-americanos. No Brasil, o índice está em torno de 6%, contra 8,7% no Chile e 5,6% no México, por exemplo. “Nunca houve desemprego em massa, a política de Estado, contra a crise, foi a de garantir o pleno emprego”, explica Mateo.
O vice-ministro reconhece o risco, agora, de aumentar o índice de desemprego no país, mas garante que a economia cubana poderá absorver grande parte dessa mão-de-obra. “O conta-propismo é uma alternativa de trabalho. Os que ficarem disponíveis também poderão trabalhar na agricultura”, exemplificou.
Os trabalhadores demitidos recebem, além de um mês de salário no primeiro mês sem emprego, até 60% de seu último vencimento por outros 120 dias, dependendo da antiguidade no serviço público. A fórmula modifica a política anterior, pela qual havia um seguro de desemprego que, em alguns caso, se prolongava indefinidamente.
Para Mateo, Cuba tem enfrentado uma queda na eficiência, efeito colateral da política do pleno emprego, uma das vitrines do chamado “socialismo real”. Na regra vigente antes das reformas, um empregado sabia que, se seu desempenho não fosse satisfatório, a máxima punição seria a transferência de função. Quase 80% dos cinco milhões de trabalhadores cubanos são servidores públicos e calcula-se em um milhão a gordura nas folhas salariais do governo e suas empresas.
A possibilidade de ser demitido por razões produtivas criará uma insegurança inédita para o trabalhador cubano, admite o vice-ministro, mas deve ajudar na busca de eficácia das autarquias e companhias estatais. “Enxugar a máquina é fundamental para atingir os objetivos propostos no Congresso, entre os quais a elevação dos salários e a redução dos gastos públicos improdutivos”, destaca Mateo. “Sem a elevação da produtividade também não poderemos arcar com as despesas sociais próprias de nosso sistema.”
Por: Daniella Cambaúva e Breno Altman, do Opera Mundi