Juristas e docentes pedem abertura de comissão da verdade para investigar as relações entre a maior universidade do país e o regime autoritário (1964-1985)
São Paulo – Um ato realizado hoje (24) para cobrar a abertura de uma comissão da verdade na Universidade de São Paulo (USP) transformou-se em uma reflexão entre os elos da atual administração com a ditadura (1964-1985). Sob as arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, docentes afirmaram que os episódios de repressão vistos na gestão de João Grandino Rodas repetem uma história sobre a qual não se estudou.
“É preciso abrir a caixa de surpresas da USP durante o regime. É preciso, com toda a tranquilidade, mas também com energia e decisão, que sejam abertos os arquivos da universidade para saber quem colaborou com o regime, quem ajudou para tantos sequestros e torturas”, afirmou o professor emérito da Faculdade de Direito Fábio Konder Comparato.
Primeiro a discursar, ele indicou que o passado escravocrata brasileiro está intimamente ligado ao regime autoritário e ao presente de violações de direitos humanos. O jurista lembrou que o castigo aplicado aos escravos era um sinal de dignidade dos proprietários rurais. A isto, na visão dele, somou-se o regime capitalista, que passou a indicar que cada um deveria cuidar apenas de seus próprios interesses, sem importar-se com as questões alheias. “Tudo isto está na raiz da tragédia de 20 anos de regime empresarial-militar”, argumentou. “Terminado o regime, virou-se a página. Isso não é novidade. Com o término de quatro séculos de escravidão legal, viramos a página. Estabelecemos um regime de total impunidade.”
O ato organizado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto tenta pressionar o reitor para que seja instalado um colegiado, com participação igual de alunos, professores e funcionários, que apure de que maneira a USP atuou na ditadura e de que maneira a ditadura atuou na USP. O debate ocorre no momento em que há críticas à administração da universidade, tida como autoritária. Rodas firmou no ano passado acordo com a Polícia Militar para que passasse a atuar dentro da Cidade Universitária. Ao longo dos meses surgiram várias denúncias, algumas comprovadas em gravações, de abuso de autoridade ocorridos no estado de São Paulo como um todo.
Antônio Magalhães, diretor da Faculdade de Direito e estudante durante os anos da repressão, lembrou do episódio dos anos de chumbo em que a Polícia Militar tentou invadir o edifício, localizado no centro da capital paulista, mas foi impedida pelo então diretor. “O que vivemos hoje na nossa universidade é a manutenção do passado, é a repetição do passado”, apontou. “Na ditadura um diretor foi à porta negociar com os algozes do regime para que não entrassem. Agora é o diretor quem chama a Polícia Militar para entrar aqui.”
Para os professores, é o momento de pressionar também pela democratização da universidade, que até hoje tem eleições indiretas para reitor. Rodas, por exemplo, foi o terceiro mais votado em uma lista elaborada apenas pelos professores de mais alto grau e um número reduzido de alunos e funcionários. Em sua gestão, tem aplicado na punição de estudantes o Estatuto da USP, elaborado em 1972.
“Precisamos recuperar o ambiente daquela época para saber como se assemelha ao que vivemos hoje”, expôs Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais. “Esse espaço público que podemos construir vai permitir saber a história das pessoas que nos cercam.”
Além do presente, os professores lembraram de um passado pouco lisonjeiro para a USP, que enviou quadros à ditadura. Um dos exemplos mais conhecidos é o de Luis Antônio da Gama e Silva, ministro da Justiça de do ditador Artur Costa e Silva, professor da Faculdade de Direito e reitor da universidade. Ele foi o responsável pela publicação do Ato Institucional Número 5, tido como o mais duro dos anos de governo de exceção. Editado em 1968, restringiu as liberdades e fechou o Congresso, abrindo espaço para o aparato de repressão dos anos seguintes.
“Há professores que apoiaram aplaudindo, não se incomodaram. Estes, de repente, sumiram. A resistência à ditadura se tornou a história oficial da faculdade”, afirmou o titular da Faculdade de Direito Gilberto Bercovici. “Queremos saber quem fez o quê. Quem pressionou, quem restringiu, quem posa de democrata sem sê-lo.”
Rodas, declarado persona non grata em sua faculdade de origem, foi citação constante. “Talvez o magnífico reitor, que tem uma identificação com a polícia que nos preocupa, tenha se esquecido que aqui há pessoas que têm memória e que vão lutar pela memória”, advertiu o professor Sérgio Salomão Shecaira. “Se não conhecermos a história de nossa universidade não entenderemos o momento que a gente vive, de retrocesso.”
Comparato e outros professores demonstraram otimismo com os jovens que têm se reunido em várias cidades do país para realizar os chamados “escrachos”, manifestações com o intuito de denunciar o local de moradia ou de trabalho de colaboradores do regime. “Há um rumor neste país. A terra começa a tremer sob os pés daqueles que participaram da ditadura. Se os ditadores nos julgaram mortos e acovardados, enganaram-se. Estamos vivos e estamos mais fortes”, disse Damião Trindade, aluno em 1968.
(Por: João Peres, Rede Brasil Atual)