A noite de ontem terminou tarde, por volta das duas da manhã. Convidamos uns amigos italianos para um jantar brasileiro, à base de moqueca de camarão. Um dos pratos do vasto cardápio deste imodesto cozinheiro que vos escreve. Depois da mousse de maracujá, os convidados tiveram a oportunidade de saborear e terminar de se embriagar com a minha Gabriela, licor caseiro feito com cravo e canela. [Suspiro…]
O dia de hoje começou cedo, com um doce aroma de dendê e leite de coco na cozinha já limpa. Às sextas a jornada termina por volta das cinco da tarde, apesar do sol ser ainda aquele do meio-dia. A noite só vai chegar às dez; mas eu perco o espetáculo, entregue ao cansaço e ao sono. A brisa quente da janela e o suave perfume de mulher ao meu lado me despertam devagar. Preguiçosamente decidimos o fim-de-semana, quando as meninas irão a Trentino, região do Norte da Itália de clima fresco.
O dia passa e o tempo voa. O Stradone Farnese, a avenida onde moramos, é a principal via do centro de Piacenza. O movimento é intenso. Da janela vejo as pessoas que lotam a sorveteria do outro lado da rua e desço para fumar. Meia-noite. A vinte metros de casa entro na Corso Emanuelle, rua chique de lojas idem. Sem movimento de carros, as mesas dos bares e cafés tomam conta dos espaços. Parece que toda a cidade acabou de acordar e resolveu fazer-me companhia. Vejo três rapazes que brigam com a máquina de venda automática de cigarros.
Sigo pela Corso até a Piazza Cavalli, no centro histórico, onde acontecem apresentações musicais dos mais variados estilos, de música cubana a obras de Giuseppe Verdi, ex-morador ilustre da cidade. Funcionários da prefeitura recolhem as últimas barreiras que impediam o trânsito na área. As vetrines expõem as roupas coloridas que se vêem pelas ruas. Descubro que o laranja, o ocre e cores vizinhas comandam a estação. O Teatro Municipal, no final da Via Verdi, está concluindo o espetáculo e, em breve, as pessoas lotarão a Antica Osteria del Teatro, um dos cinco melhores restaurantes da Itália, segundo os três mais conceituados guias gastronômicos italianos.
A cidade vive. Pulsa, cresce, se move e envelhece. As ruas são veias, e não simples artérias, por onde corre o sangue quente nos passos da gente. São homens, mulheres, velhos, crianças, bicicletas e um ou outro carro de polícia que seguem no ritmo lento do calor piacentino. A livraria que reabre às nove da noite me faz lembrar uma loja de saldos. O mendigo do centro (não sei o nome dele) montou uma banca de camelô com uma caixa de papelão e oferece aos passantes diversos panfletos que lhe dão para distribuir. É uma pessoa tranquila, que vive da caridade dos comerciantes locais, transferindo sua casa sobre a bicicleta de uma marquise a outra.
Vencidas pelo calor, algumas pessoas observam silenciosamente o movimento das sacadas, na rica arquitetura do centro antigo. Em frente aos cinemas o movimento é grande, com pessoas que saem da sessão das dez e outras que entram para a da meia-noite; um luxo que só existe nesta época. Os celulares já não tocam. Poucos cães passeiam com seus donos. Poucos, também, são os estrangeiros pela rua, mais habituados aos próprios costumes de recolherem-se com a família ou de procurar companhia em lugares fechados. A sexta-feira está terminando. Ou apenas começando…
Volto para casa olhando a face da lua, que começa a se esconder atrás da igreja de Santa Clara, bem em frente a minha janela. Lampone, o cão alegre da vizinha, sai para o passeio noturno com a mãe da sua dona. Me faz festa, faz festa para a senhora de bicicleta, para a moto em cima da calçada e para a cabine telefônica fossilizada. Parece fazer festa à lua, com a cauda sempre em movimento. Lembro de uma música do amigo Jorginho: “Alto e contínuo / Alta madrugada / Ouvi um menino / Um uivo pra lua / Alva lá no céu éu éu / A alva lua / Abana a cauda / Pros cães da rua / Cantarem em coral au au / Au au pra lua…”
Da janela ouço o caminhão de lixo que trabalha; a sorveteria acaba de fechar; o sistema de irrigação, programado para este horário, rega o pequeno jardim do monumento à libertação da Itália, em frente à sorveteria. Vou até o quarto trocar de roupa e dar um beijo de boa noite. Que pode ser o último, que pode ser o primeiro. É sexta-feira.
**Allan Robert P. J., carioca de nascimento, tem 51 anos, viveu em Embu (SP) por quase duas décadas e lá se casou com Eloá, em 1987. Mudou para Salvador (BA) onde estudou Economia e o casal teve duas filhas. De lá, foram para a Itália, onde vivem atualmente. Allan é micro empresário do ramo automotivo, e Eloá trabalha no ramo de alimentação. Ambos têm raízes (amigos e parentes) na ‘ponte’ Embu-Assis-SP. Allan é irmão dos advogados Bruce P. J. e Dawidson P. J., radicados em Embu. Dawidson já foi do primeiro escalão da Assessoria Jurídica da Prefeitura de Embu no governo Geraldo Puccini Junior (1993-96), e ambos já participaram da diretoria da subsecção da OAB de Embu”.