Admiradora da experiência democrática da Grécia antiga, a pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975) via a política como “a prática coletiva da liberdade”, o que pressupõe a igualdade entre cidadãos. Antes dela, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), referindo-se ao Estado moderno – que reivindica o monopólio do uso legítimo da violência –, definiu a política como “a luta pela direção do Estado”.
Essas duas definições de política – entre tantas outras possíveis – prevalecem ao longo das 300 páginas do livro Estado e Democracia – Uma Introdução ao Estudo da Política, escrito por André Singer, Cicero Araujo – professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – e Leonardo Belinelli, doutor em Ciência Política pela FFLCH. Publicado pela Editora Zahar, o livro será lançado nesta quinta-feira, dia 20, às 17h30, em evento a ser transmitido ao vivo pelo canal da FFLCH no Youtube.
Como mostram os autores no livro, liberdade e violência marcam o percurso da política no Ocidente desde suas origens na Antiguidade. Diferente dos Estados totalitários então em vigor – do Egito à Mesopotâmia –, surgiu em Atenas, na Grécia, no final do século 6 antes de Cristo, um regime que recebeu o nome de democracia. Nele, o que definia a cidadania era o reconhecimento da liberdade e da igualdade entre os cidadãos.
Na prática, a liberdade e a igualdade da democracia ateniense se traduziam na forma como eram tomadas as decisões relativas à cidade – através do debate na ágora, a praça pública, onde todos os cidadãos tinham direito a falar. “O ponto fundamental era que o processo de tomada de decisões não fosse a expressão de uma vontade caprichosa, de uma pessoa ou de um grupo”, escrevem os autores. “Ao capricho – índice maior de um poder arbitrário, despótico – se contrapunha a ideia de um empreendimento comum que resultasse de um processo de reflexão público, feito em espaço aberto e visível, exato oposto das decisões tomadas na ‘antecâmara’, o espaço encoberto, privado, ambiente da dominação.”
Segundo Hannah Arendt, existe uma identidade entre a experiência ateniense e o sentido essencial de política. Para ela, a razão de ser da política – se tomada no sentido da democracia implantada em Atenas – é estabelecer e manter em existência um espaço em que a liberdade possa aparecer. Com isso, fica clara a oposição entre política e violência. “A polis, a cidade-Estado grega, definia-se explicitamente como um modo de vida fundado apenas na persuasão, e não na violência”, analisam Singer, Araujo e Belinelli, sempre citando a pensadora alemã. “A violência se opunha à política do mesmo modo que se opunha ao gesto de persuadir, pois este só fazia sentido onde houvesse um espaço de liberdade.”
Os autores não deixam de reparar, porém, que a liberdade e a igualdade praticadas em Atenas dependiam da opressão sobre os escravos – base da economia antiga – e conviviam com restrições impostas às mulheres e aos estrangeiros, obrigados a observar leis e decisões sem que tivessem participado da sua elaboração. “Na própria fundação da política, portanto, a dualidade entre liberdade e violência se colocava. Mesmo a democracia antiga, definida como o governo do povo, entendido este como o conjunto de homens livres, oprimia os que estavam excluídos da cidadania.”
O caráter livre e igualitário da política será substituído, na modernidade, pelo Estado absolutista, que, como apontam os autores de Estado e Democracia, tem raízes no feudalismo, uma ordem social surgida no século 10. Estimulada pela fragmentação do antigo império de Carlos Magno, essa nova ordem fortaleceu o poder dos senhores locais e revitalizou a economia. “Ao contrário do que se costuma supor, o surgimento do feudalismo dinamizou a produtividade europeia”, escrevem os autores, acrescentando que a produção feudal excedente e a retomada do comércio fizeram surgir a burguesia mercantil. “Até ali, a desorganização social, política e econômica originada das invasões germânicas tinha feito com que a Idade Média ficasse marcada por retrocesso da vida material e cultural. O aumento gradual da riqueza a partir do século 10 começou a mudar o cenário.”
Durante a chamada Baixa Idade Média – o período entre os séculos 11 e 15 –, houve a unificação de famílias ligadas à nobreza, um momento decisivo para o futuro do absolutismo. Exemplo mais significativo desse processo foi a união de Castela e Aragão, em 1469, que acumulou a riqueza e o poder gerados pela prosperidade do feudalismo dos dois reinos. “Há uma íntima relação entre a crise do feudalismo e o absolutismo, o qual, ao mesmo tempo em que procurava sustentar a classe dominante feudal, abriu as portas ao capitalismo.”
Mas isso não representou o fim da política tal como surgida na Antiguidade. Nos séculos 17 e 18, revoluções democráticas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França recolocaram no centro da modernidade as ideias de liberdade e igualdade – as mesmas concebidas pela democracia ateniense antiga. “Cada uma das três revoluções trouxe contribuições próprias”, destacam Singer, Araujo e Belinelli. “O Estado de direito, a garantia da pluralidade religiosa e a pauta dos limites do poder foram os principais legados da Revolução Inglesa. A igualdade humana universal como meta, a proteção do direito das minorias e o federalismo como garantia da liberdade constituíram marcas deixadas pela Revolução Americana. A profunda intervenção das classes populares na política, que trouxe uma noção inédita de igualdade social, compôs a herança indelével legada pela Revolução Francesa.”
Os capítulos finais de Estado e Democracia são dedicados a refletir sobre a democracia nos séculos 19, 20 e 21. “Do ponto de vista institucional, a democracia moderna se distingue da antiga por ser representativa, porém a representação insere, paradoxalmente, um princípio aristocrático no sistema”, escrevem os autores. Mas, ainda que, na modernidade, o “governo do povo” possa ser visto como uma mistura de aristocracia e democracia, os pressupostos democráticos foram responsáveis pela formação do Estado de bem-estar social, “a experiência mais democrática do período contemporâneo”.
A partir dos anos 70, porém, o Estado de bem-estar social foi erodido pelo neoliberalismo, apontam Singer, Araujo e Belinelli. “Numa etapa recente, desperta do sono do pós-guerra pela vaga neoliberal, a extrema direita, após se expandir por várias partes do mundo, tornou-se epidêmica na segunda década do século 21.”
Também essa investida neoliberal contra a democracia está de acordo com o pensamento de Hannah Arendt, como citam os autores de Estado e Democracia. Segundo ela, o totalitarismo dos anos 1930 foi um regime novo na história, cujo objetivo último era a extinção definitiva da política como prática coletiva da liberdade e cujo espectro, dali em diante, sempre rondará a humanidade. “Enquanto parte dos analistas prevê um ‘fechamento gradual’ das democracias, ocasionado por líderes eleitos, outros chegam a falar em ‘totalitarismo neoliberal’. Um terceiro campo identifica um ‘interregno’ no qual os mais variados fenômenos podem ocorrer. De explosões de ressentimento e niilismo até a reabertura de alternativas sociais e democráticas, há um leque de possibilidades neste começo do século 21”, resumem os autores.
Estado e Democracia – Uma Introdução ao Estudo da Política, de André Singer, Cicero Araujo e Leonardo Belinelli, Editora Zahar, 300 páginas, R$ 54,90.
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